No meio do jardim, o
movimento das ixoras denunciava algo se mexendo rente ao chão naquele vibrante
fim de tarde. O sol já se apressara em sair à francesa, por escancarado pacto
com um bloco de nuvens a jorrar aquela deliciosa aragem carregada de frescor que sempre antecede um dilúvio. Segurando
uma caneca de café adoçado com mel de cana, eu observava o bailado das folhas
secas sem rumo, ao capricho do vento ciciando seu clássico canto de chuva. Destitui-me
de palavras para que o sussurro das árvores visitasse o meu pensamento. Era mais
que oportuno entrar naquela dobra do dia com flagrante vida pulsando no meu
quintal derramado de éricas, begonhas e ramas. O ruído das aves se acomodando
no aconchego do bando, o aroma de ervas amassadas banhando o ar de cheiro
cítrico, as cores pinceladas no céu com nova paleta em tom escarlate, a dança sinuosa
das palmeiras no bafejo das rajadas, tudo, àquela glamourosa hora da Ave-Maria,
parecia ecoar uma prece em reverência ao Criador de todas as coisas.
E mais uma vez as
rubras ixoras se sacudiram no canteiro. Fiquei acompanhando a ondulação das
folhas, à espreita da descoberta. De repente, a pequena cabeça desconfiada de um calango emerge da rasteira folhagem e rastreia o perímetro, checando a segurança. Fiquei
imóvel para não interferir nas intenções do pequenino réptil. E num lampejo, uma
lapada certeira sorve a joaninha desavisada no pátio, frente às plantinhas.
Desaparece sem mover mais uma palha. Segundos depois, retorna ao palco do crime,
ciscando atrás de comida. Fareja como um cão de caça. Avança mordiscando qualquer
inseto ou fragmento que se mova, prende a vítima entre as mandíbulas, e
transporta a presa capturada para algum lugar oculto ao pé das densas florinhas.
Com a pressa rés à casca
das patas, o brejeiro personagem perdeu o acanhamento e já não se importava com a minha presença. Certamente
pelas idas e vindas com passe livre, se achasse dono do terreno, me tolerando como uma
invasora supostamente inofensiva no seu território. Tamanha obstinação em arrebanhar comida
para estocar sob as mudinhas floridas não fazia muito sentido, já que a carga
arrecadada era maior que o molde do seu minúsculo ventre. Fiquei à espera, com a curiosidade à flor dos olhos, enquanto frutinhos e sementes rodopiavam nos meus pés.
A temperatura desce alguns graus num ritual preliminar de agradar nossa pele antes da chuva forte. Toda
a paisagem, da terra até o céu, adquire uma nostálgica coloração sépia, nos
moldes das fotos antigas. Começava a troca de turno entre o dia e a noite e a
guarda dos anjos noturnos iniciava a ronda, soprando o orvalho sobre a Terra.
Segurava a respiração para assistir ao que viria do esconderijo naquela moita,
mas um longo intervalo de alguns minutos quase me fez desistir.
Esvaziei a caneca, de
olho na formação dos flocos de chumbo nas alturas e que lá do céu me apontavam
com relâmpagos a ordem para entrar em casa sem demora. Antes de dar o primeiro impulso
para sair de cena, cristalizei o passo com o que começou a surgir à minha
frente. De dentro da passagem do túnel secreto saiu o herói dessa história com uma marcha diferente, dessa vez, capitaneando uma fileira de calanguinhos empanturrados.
O comboio atravessou ligeiro toda a calçada, direto para o jardim oposto do
outro lado do muro, entrando, um por um, numa cavidade entre os seixos debaixo
do vaso de eugênias. Seguramente um abrigo acastelado contra as pancadas da
iminente tempestade.
Talvez pelo cenário bucólico
daquele belo entardecer, meu pensar descreveu uma romanesca associação daquele bichinho
instintivo no seu mundo animal com a formação do agrupamento familiar entre as
humanas criaturas. Provedor, protetor, condutor, pronto para garantir a
sobrevivência e a segurança de suas crias, o pequeno lagarto armava suas
estratégias com as informações que a Divindade Superior inoculou em seus genes,
cumprindo ao pé da letra o que a programação divina lhe incumbiu.
Na visceral linguagem
dos movimentos daquele animalzinho, cercando sua prole de cuidados, percebi alguns
princípios presentes também na convivência em família do bicho-homem. Lá dos
subterrâneos da memória, me veio o registro de que a família, desde sempre,
representa o laurel maior de um ser humano. Sua maior conquista. Sua melhor
referência. Seu mais alto pendor.
Na família se aninha o
amor desinteressado e espontâneo que abastece cada um com o lenitivo capaz de domar
tormentas. Nesse reduto afetivo, onde o dividir ensina com quantos ossos se faz
um coração, os membros entram descalços dentro do abraço e compartilham um
mesmo contexto. Aprendem a se definir como diferentes, a esquinarem-se com um
sorriso, desses que criam nos outros uma razão para inventar a felicidade. Em
tempos difíceis ou ditosos encarceram lá no escaninho das emoções, um
sentimento agregador, quando os exemplos e as experiências de todos fortalece o
tronco salutar desse amor a toda prova. Aprimoram-se os relacionamentos, ainda
que a duros entreveros, ainda que larvas infectas tenham comido os gestos,
mastigado o sangue e desbotado o olhar.
Penso que existe uma chama
votiva em algum lugar em nós por dentro da pele pronta a alumiar o que de
melhor há em nós para a família. Pronta a aflorar os melhores predicados, a exercitar
a paciência, a gentileza, o agrado sincero. São os nossos que merecem o
primeiro sorriso da manhã, o abraço mais apertado, a atenção incondicional, a
torcida de punho fechado, a oração mais contrita. A magia dessa troca agiganta
as forças contra o mundo lá fora, ainda que o mundo seja esse lugar pequeno,
onde a temperança não cabe. Por fora, o planeta pode desabar, o caos se
instaurar, mas no seio do lar, o universo cresce, a confiança garante, o afeto
tem a força do laser contra o impossível. Tudo é de repente simples, como tampar
no pulmão campos florados inteiros, pestanejar nesgas de sol, florir pedras
roladas, ou guardar estrelas entre a ramagem. É no calor das mãos dadas que
crescem as estações abundantes de futuro, com a acolhedora sensação de se
sentir no mesmo oco, em suspiros antecipados por um ou dois arrulhos inventando
um céu mais baixo, partilhando e crescendo juntos, como os calanguinhos embaixo
do vaso, antes da grande chuva. Porque os dias mais belos são esses, em que
construímos sonhos e nos sentimos para sempre.
Família é isso. É o
porto seguro. Sem ela é como estar num mar, à deriva, sem bússola, sem farol,
sem horizonte. Ou num mato, sem mapa, sem trilhas, sem cão, sem norte. Como um
nômade errante por dentro da noite, que sem perceber que são negras suas
estrelas, deixa o coração vazio e sem memórias encurtar ao tamanho de uma
polegada de dor, até fenecer no anonimato.
Preciso correr
depressa, o primeiro trovão arremessa seu jato de fogo num raio muito perto.
Grossos pingos d’água começam a cair com o peso de meteoros sobre a minha
cabeça e acabo de lembrar que toda a minha vida guardei no peito o mar, o por
do sol, os dias calmos ou intensos, a chuva, as árvores, as margaridas, os meus
entes queridos, os meus filhos que são a minha família frutificando a sete
camadas de afeição. Um dia vão saber que vivi com um pé na primavera e morri de
sol, de luar, de paz, de riso, de potes de afetos, de luz, de família.
Mãe, mesmo não conseguindo expressar o significado exato do seu texto, uma vez que dizer apenas que é lindo é dizer menos, me arrisco a adjetivá-lo como enebriante e notável. Sempre pensei que o amor ao ente familiar é o incondicional, mas acredito que é algo mais sublime do que incondicional... quem sabe seja o amor perfeito .. não sei. O que sei é que é com a família se tem plena tolerância, que é pela é que se nutre o bem querer, que é pela família que se luta diariamente para dar o melhor, que é pela família que todo o sacrifício é válido, que é com a família que se tem as sublimes alegrias... enfim, tudo pela família. É claro que só sei dessas coisas porque muuuuuito cedo, você me ensinou isso.. Sua saia era o meu porto seguro, a sua mão segurando a minha firmemente para andar na multidão era o meu porto seguro, o seu colo era o meu porto seguro, o seu corpo quentinho era o meu porto seguro...hoje, o seu sorriso, seu olhar curioso, observador, suas palavras, seu abraço generoso, sua voz, seu coração e você todinha ... são o meu porto seguro. Mil beijos. :D
ResponderExcluirAmiga Regina,
ResponderExcluirNovamente você sela seus pensamentos externados nesta crônica, com uma raridade de argumentos e sentimentos aflorados desse coração, que me deixou mais ainda pensativa do quão é importante cada pessoa que nos cerca.
Creio que todos nós, desde os remotos milênios de nossa criação, vivemos à procura de “portos seguros” para cada situação que nos deixem desestabilizados.
Irretocável sua abordagem pelo foco da família, mas se bem nos apercebermos, temos “portos seguros” sempre que encontramos proteção, compreensão, fonte de ensinamentos e orientações ou até mesmo um ouvido e um ombro que nos acolha.
Lamentavelmente, sabemos de muitas pessoas que não são acolhidas em suas famílias de lar. Algumas pessoas até nem reconhecidas por seus pais, irmãos ou primos, esposas, maridos, e filhos. Será que não teriam outro “tipo de família”? Um grupo que lhes de segurança na alma para prosseguir caminhando mais um dia de prosperidade de cada vez?!
Como senti nas suas palavras, Feliz daquele que tem uma família que se torne um porto seguro sempre que o coração aperte. Não importa a consanguinidade, nem a prosperidade de cada um dos seus elementos, mas sim o brilho que o coração deles irradie sempre que “um outro coração atraque necessitando de suprimentos para seguir em frente”.
Obrigado por mais essa joia que escreveu, minha amiga!
Beijos
Que lindo, Regina...
ResponderExcluirMe deixou toda amolecida!
Família é o que temos de mais precioso. Os nossos queridos são aqueles que o Soberano determinou, como toda sua sabedoria, que nos acompanhassem para aprendermos uns com os outros. São as pessoas que mais nos conhecem, com quem não temos quaisquer reservas.
Aproveito a oportunidade para dizer que durante o pouco tempo que convivo com sua família, aprendi muito o sentido desse instituto divino. Você é um exemplo de mãe e seus dois filhos refletem a luz que existe em você, são dois anjos, com corações raros.
Parabéns pelo conto...e eu continuo a aprender com vocês!!!
Regina Falcão, encontrei seu blog enquanto perambulava à busca de textos semelhantes aos meus.
ResponderExcluirAcabo de ler este, Porto seguro, com algumas certezas, dentre elas: blog adotado!, sem dúvida alguma.
Que rico vocabulário! Que organização de ideias, pensamentos e frases... Que habilidade em situar o leitor! Lindo texto, sublime!
É pretensioso demais, porém fica o convite: sentiria-me extremamente honrado com uma visita sua ao meu blog 'Conteúdo pessoal' em http://kosloskiblog.blogspot.com.br/
Cordial abraço!