domingo, 3 de julho de 2016

AUTORRETRATO

Em preto e branco, o espelho traça, todos os dias, as linhas da imagem que guardo de mim. Testemunha confiável dos meus murmúrios, aquele antigo vidro refletor de confidências sabe tudo da minha jornada.

Pedi-lhe que montasse em tela, suficientes reminiscências para a minha autobiografia, mas a ele restou uma obra inacabada, porque minha alma quase invisível, é esquiva de nascença e nem sempre se deixa retratar. 

Hoje finalmente lhe perguntei: “Espelho, espelho meu, então quem sou eu dentro das suas memórias?” O espelho, circunspecto em sua expressão e fiel às suas lembranças, respondeu com as minhas próprias palavras, ao entregar meu autorretrato, assim pintado:
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Sei que nasci Regina, mas entre entes queridos me torno abreviada e atendo por Gina. Cheguei a este mundo numa estação do ano em que a palavra tinha peso, a música tinha melodia, e o abraço tinha sentimento. Minha infância fala de uma canção noturna onde as pessoas se cumprimentavam antes do sono e as sombras dos arbustos no muro dormiam mais cedo.

Sou feita de carne, osso e questionamentos. Tenho ânsia pela vida e por tudo que nela posso aprender e ensinar. De tempos em tempos, desperto da realidade e acordo para os sonhos. Por isso, cumpro a sina de querer ser muitas mulheres numa pele só. Vivo todas num mesmo impulso, ou uma única por tempo bastante.

As pessoas do meu convívio afetivo, que historiam as minhas pegadas, são também meus amuletos. Meu temperamento mais que imprevisível diz que é próprio do meu feitio, a atração pelo desconhecido e o gosto pelo improvável. Minha maior conquista é a paz. A paz que me sacode o ânimo, que me carrega as baterias do espírito em alta voltagem, que me mantém na obra e graça da Luz. E o meu lazer começa pela minha inquieta paz, com o entusiasmo que ela me traz a estar de bem com a vida.

Minha sede em mergulhar nas entranhas do Direito, me levou ao vício de me importar com tudo que clama justiça. Declaro-me pacifista por natureza em pele de gladiadora no combate às sombras do ócio que se avizinhe de mim. O traje radicalista não cabe na minha bíblia. Meu título mais alto para fins de direitos, é o de ser humano. Sou extremamente cética quanto à política no meu País, mas, ainda que não me vista de militante, guardo um apego cívico pela minha Pátria.

Assino minhas escolhas com todas as letras e assumo ser a senhoria dos meus fardos. Longe de ser perfeita, ancoro minha energia em intensos desafios. Desconfio que nasci sem bússola, pois nas rotas que eu traço, cabem mais viagens que cidades, e as minhas mãos descrentes de pontos cardeais apontam sempre para a direção de novos rumos.

Observar e entender a natureza humana é um dos meus grandes propósitos. Sofro de curiosidade incessante por novas descobertas. Daí sobrevém um hábito corrosivo de interesse pela leitura já que a Literatura é o instrumento com que reinvento novas veredas para a minha mente.

Enquanto vivente sentenciada ao trânsito neste Planeta, aceito que posso mudar minhas certezas. Mas meias-verdades não cabem na minha lógica, pois o meu senso, de tão crítico, tem o hábito de ver e ler pelo avesso, as palavras vazias que o vento leva. Então eu deixo que a Poesia me lapide o espírito sempre tão insurgente. E sempre, e tanto, que repudia o marasmo, a injustiça, o conformismo, a violência.

Minha religião é Deus - o Senhor dos Mundos - e sou temente e obediente aos seus preceitos. Porto ainda com devoção, a filosofia de que, ter gratidão e ventura neste mundo, é conservar a capacidade de se encantar com a vida todos os dias.

Para a minha vida ideal, desenhei felicidade num éden particular. Mas o destino me respondeu com batalhas, alegando que, antes de tudo, me moldaria a ferro e fogo. Como todo mortal incompleto, o meu ser humano tropeçou em trancos, duelou com os próprios dragões e por vezes perdeu pedaços de humanidade. Meu coração sofreu trincaduras e precisou de reformas com titânio. Em minha defesa, construí um forte de pedras e cauterizei o interior ferido com aço, para esculpir na minha aparência externa a solidez de uma rocha.  Escondi-me de mim mesma, fiz-me noite e deixei-me nevar até que as asas renascessem das cinzas. Inteira outra vez, na mais pura vibração com a vida, carecia então criar memórias futuras. Assim, cruzei o corpo e me levei de volta às minhas terras de outrora e lhes recortei em nova geografia. Voei para lugares sem mapa das minhas novas vivências e inventei outros continentes. Descobri que sei menos que nada, e reaprendi a trazer às planícies da minha pele, a calmaria dos bons ventos e das boas sementes.

Hoje, teimo em regar uma paixão especial pela escrita. Pela escrita com palavras pintadas que se escondem na mais simples das prosas.  E por trazer os neurônios vertendo alfabetos pelas bordas, tenho pressa em gastar aquelas palavras que borbulham nas frestas das minhas meias-memórias.

E assim, quando mais tarde, venha o tempo a me ditar: “Não mais teus punhos conseguem anotar tua fala, não mais teus olhos podem correr na trilha dos livros, não mais teus sentidos alcançam perceber a música nas letras, nem mesmo a tua voz cantará teu pensar, pois é chegado o regresso.”

Eu possa, em reverência, lhe dizer: “Senhor Tempo. Data maxima venia, eu não sou apenas um corpo. Eu sou também uma mente. Na minha vida sem rascunho, passei a limpo as minhas ideias. E meus rabiscos darão voz a elas.”

Assim, faço o fim dos meus dias um pouco mais longe e a minha frágil eternidade perdura um pouco mais.

Essa, sou eu.

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CRÔNICA 58

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