sábado, 17 de dezembro de 2011

NOVO EU

Quando o calendário inicia a contagem do último mês do ano, Céus e Terra falam de celebrações. Nesta época, a temperatura foge da medida das quatro estações e cria um clima único, com cheiro próprio de festas para aninhar o contagiante espírito natalino. A aragem vibrante, típica desse período na minha cidade, borrifa as acácias floridas, enche a copa das árvores de gracioso movimento e o tempo começa a pulsar desde o raiar das manhãs. É o fim do ano trazendo a graça dos seus ares.

A esperança parece tomar corpo em nossa forma de pensar e agir, à beira dos ventos de um entusiasmo incontido a desenhar a ternura dos dias de Dezembro. Os rituais preparatórios dos festejos calibram os batimentos dos temperamentos mais afoitos. No calor preliminar de fetiches e fantasias, torres de presentes são montadas com euforia, totens de conquistas são construídos e armados como troféus. Risos, ceias e brindes estão na pauta da contagem regressiva. Neste ciclo mágico, um ânimo intenso de espiritualidade me nasce precoce no sangue, e coloca minh’alma encoberta embaixo de cada lembrança que me traz o Natal.

Mas aqui percebo que os natais me custam alguns questionamentos sobre a verdadeira essência deste evento. E me pergunto se nesta data, o nascimento do Divino Nazareno – o Rei dos excluídos de todos os tempos – está, de verdade, no foco das comemorações entre os povos. Às vezes me parece que a herança de Amor sem fronteiras legada por Jesus de Nazaré ainda não transvazou para as artérias de muitos. Enquanto grande parte da burguesia aguarda o Natal assentada em suas riquezas, enclausurada em si mesma, o portal da exclusão social se faz acanhado, reunido na solidariedade de poucos. Muitos são os chamados, mas poucos são os que atendem ao convite para uma ajuda humanitária. Pessoas em todo o Globo se confraternizam com o nascimento do Sublime Galileu para vê-lo morrer, no instante seguinte... em cada palavra impregnada de silêncios, em cada gesto de descaso, em cada omissão consciente, em cada destrato à vida.

Entre as luzes de adorno que ornam as sombras urbanas e tingem o céu de vapores afogueados, reina a lua cheia como testemunha soberana, quieta e taciturna como meu coração condolente, a escutar o sussurro da humanidade imersa no burburinho das vésperas.

O Universo transborda, inundado de votos e pedidos enviados ao cosmos, vindos de um mundo controverso. Na senda dos espaços incomensuráveis, a atmosfera leva o coro das vozes dos homens de bem, mas está intoxicada com a ganância dos homens de pouca fé. Homens que se dizem civilizados, mas não conseguem viver sem ensanguentar a paz com gritos sequiosos de guerra, ou sem transformar o paraíso terrestre em um inferno de queimadas, de lençóis freáticos envenenados, de florestas ceifadas, de espécimes animais dizimadas. Homens de fé nenhuma capazes de tornar o mais fecundo oásis em deserto árido e inóspito, onde milhares de crianças esquálidas e famintas, sofrendo suas dores no corpo e na alma, sequer dispõem de forças para cantar “Noite Feliz”. Sob o lume trêmulo do desejo de sobreviver, essas vítimas do abandono, ainda que acometidas pelo mesmo mal, acariciam o uivo da fome dos irmãos menores, com o estômago encostado na espinha e os olhos a fugir das órbitas, varados de banzo pelos entes queridos que se quedam no caminho. Anseiam pelo milagre de um simples ato humano a estender-lhes a mão e saciar-lhes a fome de amor.

Aquelas imagens todas teimam em colidir-me de frente e se precipitam sobre as minhas mãos pensativas. É que a existência tem gosto ácido para quem desenvolveu a postura de estar comprometido com a vida. É preciso chama para sonhar o belo, forças para realizar o útil, porque o real é indócil, complexo e farto de distrações. Por isso, a cada ano, morremos um pouco na impotência de mudar o mundo, de cobrir com bálsamos o mar das esperas dos aflitos, cujas lágrimas furtivas expõem almas em frangalhos. Para que este Natal seja real, como apregoam as crenças e a mídia consumista, precisamos recriar o amanhã.

Um amanhã com espaço alinhado ao coletivo. Porque o Sol e a Lua se revezam para nos trazer os dias e as noites, à espera de nossas férteis ações. Porém, quase sempre os nossos propósitos pairam no traçado das ideias. Planos de mudar, reparar, avançar, são renovados em soberbos discursos de elegantes vocábulos sem convicção nenhuma. Desejos de ser e fazer melhor, tinem no levantar de taças e cálices para os brindes ao clarão dos fogos de artifício do dia 25. Mas, tal qual as bolhas do vinho espumante, todas as promessas morrem no céu da boca, não chegam até o coração. Nada acontece. A metamorfose não se perfaz. Há que se abrir a tampa do peito para uma faxina. Começarmos os preparativos por nós mesmos perscrutando o nosso interior, já é um bom ganho. Há pesos a levantar que são nossos ossos pessoais, até nos colocarmos em paz com as pessoas do nosso convívio. Olharmos em volta da nossa cômoda rotina e enxergarmos as possibilidades para socorrermos os que nos estão próximos ou distantes, é o vitorioso passo seguinte. Aqui está o mistério da nossa fé: a capacidade de sairmos de nós mesmos e nos arriscarmos a fazer diferença. Penso que é assim que nasce uma nova pessoa em nós: com uma mudança de atitude, a partir de uma tomada de consciência.   

E na noite em que a Luz nasceu, imagino que também há algo espiritual que possa ligar a figura dos profetas, dos monges, dos poetas, dos filósofos, dos homens de boa vontade, de todos os credos, raças e castas, para magnetizar o hálito das palavras numa oração, que em uníssono, potencialize o nosso contato com o Altíssimo.

Tal como os Reis Magos guiados pela Estrela de Belém, podemos depositar ao pé da manjedoura a nossa prece. Em nome do amor universal, como se no Presépio estivéssemos, elevamos o nosso pensamento ao Jesus Menino e, numa comunhão cósmica e transcendental, pedimos pela recuperação dos sofridos e indefesos irmãos onde quer que estejam. Pela restauração do Planeta dilapidado, com a Natureza em decadência. Pela elevação da consciência dos que exercem o poder de mando sobre as Nações. Pelo milagre da transformação no coração dos ímpios. Pela expansão da paz entre todos. E deixamos como penhor do pedido, a garantia de fazermos a nossa parte, ainda que com pernas trôpegas.

Que o brilho do Amor sacramente o nosso envolvimento com o novo ser desperto em nós nesta noite, para que perdure por todas as noites das nossas vidas.

Hosanas ao nosso “novo eu”!

Assim eu acredito em mudanças. Podemos brindar.

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CRÔNICA 52

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6 comentários:

  1. O que é mais importante no Natal?
    A razão da comemoração é o nascimento de Jesus Cristo, como é sabido. Mas há algo que se tornou tão forte no humanidade, que ofusca a essência do natal em muitos lares: o cego consumismo capitalista. Para muitos, o natal é sinônimo de mais dinheiro no bolso, com aquela tv nova, aquela viagem, aquele computador, a roupa nova.
    Jesus foi o maior símbolo de amor ao próximo e justamente no dia do seu aniversário, mas a maioria das pessoas se restrige ao seu individualismo, enquanto muitos padecem sem nada ter.
    Quem merece o presente é o aniversariante e, sem dúvida, ele ficaria muito feliz se, ao menos do dia do aniversário dele, fizéssemos o bem, ajudássemos quem realmente precisa..tentando imitar um pouquinho do que ele fez por nós.
    O mais importante no Natal é o verbo dar e não o receber!!!

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  2. Nesse momento, não me ocorrem palavras para falar sobre o tema sem correr o enorme risco de parecer clichê, até mesmo porque o conto está construído com maestria poética e desenvolve o tema com perfeição. O despertar vem para cada um, sempre. Ainda que demore, um dia, o egoísmo se rende de alguma forma. O sentimento de fraternidade é algo que precisa nascer em todos nós para que seja algo em todo o mundo. Enquanto isso não chega, podemos seguir fazendo a nossa parte. O nascimento de Jesus é lembrado todo ano e essa repetição sedimenta os melhores sentimentos em nós, quando carregado de espiritualidade. Contudo, qualquer convite à reflexão é inócuo se o indivíduo está com o coração endurecido. Excelente reflexão e obrigado pelo convite à crítica! Feliz Natal e até o próximo conto.

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  3. Concordo com a autora: a humanidade vai de mal a pior na questão da solidariedade, educação e meio ambiente.
    Também concordo em colocar nossas preces diante de Deus neste Natal.
    Mas, tenho algo a acrescentar.
    Sou da famosa geração Y, rotulada pela familiaridade com a tecnologia, chegada rápida ao poder e, por mais incrível que pareça, pela responsabilidade social.
    Neste Natal, e nos vindouros também, além do que já foi lindamente exposto no texto, cabe acrescentar às nossas orações as perguntas: o que posso fazer para melhorar a sociedade? Se está faltando solidariedade, como posso concretizá-la? Como vou lutar contra os maus-tratos do homem contra a natureza?
    As respostas para essas perguntas fazem parte das repostas às preces que colocamos diante de Deus.
    Ir atrás dessas soluções nos coloca num papel ativo diante dos problemas, o quê, se houver comprometimento, ajuda a trazer equílibrio às forças da humanidade.

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  4. Assumo aqui a autoria do comentario postado pelo sr. Anonimo! rsrs

    Parabenizo mais uma de suas belissimas obras, destacando a minha felicidade quando percebo que ainda existem pessoas que querem fazer o bem...ainda e' possivel unirmos forças contra a ganância e egoísmo, tão presentes na humanidade. Vi, dois dias antes do natal, um jovem rapaz, que acabara de perder seu aparelho celular, encontrar um celular perdido por mim em uma loja e garantir a devolução. Disse o bom moço que estava a espera da oportunidade fazer o bem na celebração do natal. E disse, ainda, que recentemente outra pessoa havia devolvido a ele um celular que havia perdido e que gostaria de fazer o mesmo por alguém!
    O bem é como um vírus: basta concentrar esforços para propagá-lo, que ele certamente se espalhará sem muito esforço.

    Seus contos fazem parte do rol de maneiras de propagação!

    Lindíssima obra!

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  5. Uma das coisas mais bonitas que ocorre neste período é a preocupação das pessoas com a religiosidade, do espírito de fraternidade que acontece entre todas as pessoas e isso é bonito de se ver e independe de religião, porque todos têm seu credo e acreditam em algo maior que rege nossas vidas. Parabéns como sempre seu conto emociona, soube descrever muito bem sobre essa data.

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  6. Amiga Regina,

    Eu já havia lido esta crônica no fim do mês de dezembro mas agora ela teve um sabor diferente quando a reli.
    Fico boquiaberta com sua sensibilidade e facilidade com que transita nos sentimentos escondidos das pessoas que compõe o cenário de suas análises e críticas.
    Sabe, Regina, por vezes eu fico um tanto desacorçoada com essas imagens tristes e solitárias que descreveu. Sempre, nessa época, temos a sensação de que “este é o último ano de penúria” para essa gente.
    Temos até a sensação de certeza quando vemos distribuição de alimentos, brinquedos, apertos de mãos e abraços...Como diz um ditado português, “uma novidade são só 3 dias”.. Tudo volta ao normal assim que passado esse período de comoção e de enlevo espiritual que todos os menos apenados pela pobreza acumularam nos dias críticos de comoção social..
    A pobreza material e espiritual parece dar uma trégua entre as vésperas de natal até imediatamente após o ano novo. Passado esse período, tudo continua como dantes.
    Os menos afortunados são simplesmente “premiados” com brinquedos, alimentos e orações. Os outros 350 dias ano, continuam jogados à própria sorte. Se bem que vão viver quase um ano no “aguardo dos presentes, alimentos, orações e abraços”... daí recomeça o ciclo como sempre foi desde muitos séculos
    Continuo sonhando que um dia nossos governantes, em todas as esferas, tenham políticas inspiradas em nossos votos de feliz natal e de próspero ano novo.

    Às vezes você me parece com um coração e um cérebro de tamanhos fora do comum, de tão sensível e perspicaz!
    Beijos

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