segunda-feira, 14 de novembro de 2011

EM TRÂNSITO COM O INIMIGO

Na porta de saída do shopping a chuva miúda desencorajava o acesso aos carros no estacionamento. Enquanto avaliava a disposição das nuvens para derramar tantos pingos com aquela impudente preguiça, pressenti um olhar insistente de alguém sobre mim. Voltei a cabeça para o lado e reconheci um semblante de outros tempos. Ela, sempre tão próspera, mantinha a íris fumegando ao clicar cada movimento meu. O mesmo olhar fulminante do passado me escaneava de cima a baixo, mapeando cada possível alteração entre o ontem e o hoje. Tudo naqueles olhos gotejava iras amordaçadas. Era ela, à época, uma conta do meu rosário de penitências, um desafeto de papel passado com ideia fixa em me declarar guerra. Ora pela concorrência tola por notas no curso acadêmico, ora por outras miudezas do mesmo naipe. Instintivamente, um arquivo da minha coleção de fábulas foi carregado na minha memória ram, mais ou menos nestes termos:

Um inocente vaga-lume movia-se fosforescendo entre a folhagem que cobria o chão da floresta com um manto verde-musgo. Tal como uma estrela sozinha, alumiava todo o raio de alcance de sua pequena centelha, simplesmente, por dar o melhor de si. Cintilar era sua especialidade e as noites eram suas naquele mundo onde as sombras se banhavam no clarão do luar, porém o seu pisca-piscar intenso sinalizava a direção do seu rastro. Uma serpente de hábitos noturnos, rastejando a densa relva, percebeu na escuridão as faíscas luminosas enfeitando os arbustos. Quieta, sob os ramos soltos, mirava entre uma e outra nesga de luz aquele sobrevoo rico de lampejos. E como a noite dali lhe parecia mais bonita!... Invadida por sentimentos tormentosos, inquietou-se com a marcante presença do pequeno inseto. Querer ser assim não basta, há que destruir quem o é. Decidiu aniquilá-lo e deu início a uma implacável perseguição sem trégua. O pirilampo, tomado de pânico, desconhecendo as razões para tamanha fúria, ocultava-se do foco hipnótico da feroz predadora e disparava numa corrida sem norte. Assustado e ofegante, embrenhava-se erradio mata a dentro, sem faiscar, à procura de um socorro. O agoniado encalço prolongou-se por três dias, mas a peçonhenta não desistia, obcecada em eliminar da sua vista criatura com tal recurso. Já de fato, não mais restava, nem tempo, nem energia para aquele pequeno corpo livrar-se da treva de tão grande ameaça. Acossado na cavidade de uma rocha, cansado e já sem forças, o vaga-lume, sem saber que rumo dar às lágrimas, perguntou à cruel caçadora: - Posso lhe fazer uma pergunta? - Não costumo abrir esse precedente para ninguém - respondeu o réptil com olhar de desdém - mas já que vou te devorar mesmo, pode perguntar. Gaguejando, a vítima encerada por todos os medos, arriscou: - Pertenço a sua cadeia alimentar? – Não – resmungou a rastejante com indiferença. Intrigado com a falta de propósito, prosseguiu o vaga-lume: - Eu te fiz algum mal? – Não - bufou a cobra, serpenteando para mais perto. Nesse momento, o ofídio venenoso se enrodilhava impaciente, armando o bote fatal. Atônito, sentindo o hálito tétrico da morte a paralisar suas minúsculas asas, o frágil inseto ainda quis saber: - Então, por que me persegue, por que você  quer acabar comigo? Num berro retinindo lá das vísceras, a víbora revelou: - Porque não suporto ver você brilhar!

O quotidiano da humanidade está infestado de cobras perseguindo vaga-lumes. De condutas prejudiciais violando valores, só pela volúpia de vencer. De gente atropelando gente disputando vanglórias, quando a inveja e despeito inúteis rivalizam próximos e até distantes. Carece estar alerta para sair com um mínimo de escoriações das investidas adversas. Escolher em quem confiar tornou-se questão de sobrevivência. Resguardar-se da exposição a bombardeios diários de ondas e atitudes escuras nas relações sociais e profissionais, é investimento em saúde.

Na escola da vida real, essa aula de convivência com o inimigo em trânsito nesta dimensão terrena, é de difícil assimilação para alguns. Extremamente difícil, eu diria, quando se sofre um ataque injusto vindo de alguém semelhante a nós: mortais nascidos para um processo de experimentação de viver e aprender. Nessas circunstâncias, a tendência do espírito ferido é empunhar as armas e levantar a foice para o golpe. É quando as energias negativas da raiva derivada de tais experiências, cravam resíduos de intoxicação no próprio campo magnético do emissor, abrindo um círculo de poluição tão denso que somatiza, inexoravelmente, as doenças no corpo físico. 

Todo esse circuito nocivo é regado, desde a raiz, pela emoção liberada no ressentimento. O ressentir é o mesmo que sentir de novo o que já passou. É como ignorar o presente e dar as costas ao futuro, privar-se do progresso e da prosperidade. Urge desatar tal fardo. Deixar de ressentir é se libertar. Ninguém, em mente sã, se dispõe a ficar prisioneiro de algo que faz mal a si mesmo, normal é almejar se livrar de tal suplício. Assim, a atitude que neutraliza o ressentimento, a vacina que imuniza contra a corrosão do ressentir, se chama... perdão.

Bem sei, parece teoria fantasiosa de inviável aplicação prática, mas perdoar é uma atitude racional, é um ato inteligente de autopreservação. É uma religião no sentido de religar-se a Deus pela compreensão de si mesmo. O perdão é interior, ocorre em domínio reservado do nosso plano mental. Não requer reconciliação ou uma exteriorização amistosa com o ofensor. Não significa aceitar o comportamento que nos prejudicou ou que ofendeu a outros, nem renunciar valores que foram profanados. É um “deixar ir”, um corte para desprender o grilhão, uma permissão a si mesmo para ser livre.

Porém, o primeiro passo para perdoar é o querer. Um querer pessoal, intransferível e urgente, mas quem se demora na margem, sofre atraso em caminho. No caminho do avanço, da mágica transcendência no contexto da experiência humana.

Finalmente, a chuva buscou outros pastos e deixou uma fina garoa a lembrar de sua passagem naquela tarde. Todos começaram a se dispersar e esvaziar a porta. A minha arqui-inimiga continuava recostada no portal de entrada numa moldura de gelo e ranço. O olhar de Medusa pronto a me petrificar, certamente não deixa no peito o coração enxergar de dentro. Inevitável cruzar com a sua presença na passagem para a saída. Nunca entendi que proveito teria a hostilidade ostensiva e obstinada daquela colega, a troco de insignificâncias, mas sei que há lutas e dores que só o Juiz Supremo pode julgar em sã consciência. Avançando para o lado de fora do shopping, reunindo tudo que já aprendi, olhei de frente para a moça e entre um ligeiro meio sorriso, pronunciei mentalmente estas palavras sem mexer os lábios: “Em pensamento eu te saúdo”. E fui passando. Não importa se isso teria ou não algum efeito, alguma validade ou qualquer mérito. Mais uma vez, emiti um selo de concórdia. Saí em paz.

Namastê

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CRÔNICA 51

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4 comentários:

  1. Em primeiro lugar, parabéns pela nova e bela programação visual do blog. Atualizou, mas manteve o terno romantismo que ambienta todos os seus contos! Nossa, em relação ao conto, que linda lição e ensinamento a respeito do perdão. Acho que o verdadeiro perdão é assim mesmo, sem formalismo, sem agenda, sem erudição. Basta um ato interno onde nos libertamos da corrente que ligao a nossa mágoa ao ofensor. Quebrar essa corrente internamente é diferente de apenas afirmar: está perdoado. É claro que você tem a poesia ao seu lado e ensina com a arte que não esqueceremos. Eu gostaria muito de quebrar mais rapidamente as correntes que me unem aos meus ofensores. Hoje tento sequer deixar que se forme uma corrente de rancor. Sabe a razão? Porque aqui e ali, acabo ofendendo também e, por consequência, demandando perdão, quase que imediato!!!
    Belíssima lição e parabéns pela nova imagem do blog.

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  2. Preliminarmente, adorei a nova cara do seu espaço virtual!

    Sobre o conto, caiu em boa hora, visto que eu e Alysson falávamos justamente sobre vingança e seus efeitos, minutos antes de eu ler o conto. Você fechou nossa gestalt...
    A realidade exposta em suas palavras é muito mais comum do que podemos imaginar...lembrei de quantas vezes pessoas, sem justificativa alguma, faziam questão de me prejudicar de alguma forma. São aqueles momentos que ficamos como o vagalume, perguntando o porquê de tanto ódio...triste saber o quanto existe gente que não gosta de ver ninguém brilhando! Penso que é fruto da falta de amor ao próximo e também do sentimento de inferioridade presente em muitos que não acreditam em si e não admitem que mais ninguém vença. Lamentável!
    Como bem abordado por você, só nos resta perdoar e se desligar de toda atmosfera de energias negativas, para que possamos vencer os botes armados por aqueles que nem imaginamos...

    Obrigada por mais uma importante reflexão!

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  3. Pobre moça!Pobre cobra!
    Ambos seres vazios e sem brilho. Infelizmente querem furtar a luz alheia...
    Seu conto é belo! Gostei muito. Principalmente porque você tem uma atitude de RESIGNAÇÃO ATIVA, ou seja, você entende que há "cobras", mas sabe que o perdão não as deixa roubar sua paz interior.
    Estou "tentando" praticar a resignação (aceitação) ativa e perdoar para que o veneno (meu ou do outro) não cresça em mim.
    Belo conto! Pobre cobra, pobre moça.
    Grade autora!
    EGS.

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  4. Mas que vaga-lume de sorte heim? O seu santo não bateu com o da dita cuja peçonhenta...

    Enfim, achei muito interesante a história do vaga-lume, mas, penso que na vida real... o vaga-lume tem mais poder de fogo para se defender que uma boa retórica, na verdade, a retórica talvez seja a menos eficaz das defesas.

    O brilho do vaga-lume incomoda as cobras, e uma vez deglutido, basta continuar a brilhar, elas não suportarão ter uma luz brilhante tão próxima.

    Só isso :)

    Alysson

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