domingo, 9 de outubro de 2011

REMONTAR PARA MELHOR FICAR

Todos temos momentos lúdicos a cobiçar-nos a lembrança em passagens vividas com alguém querido.

Muito pequena, dava por mim, remexendo apetrechos na rústica bancada do meu pai. Um baú de metal pesado organizava um ferramental completo, de todos os tamanhos e aplicações. E na ponta dos pés ante a mesa de apoio, aguardava, embevecida, o momento daqueles brinquedos entrarem em ação, quando uma profusão de minúsculas pecinhas, molas e parafusos se enfileiravam para os revezamentos das ferramentas durante o processo de reanimação de algum eletrodoméstico. Espreitar aqueles reparos que estendiam uma sobrevida aos utensílios, trazia a mim um sabor de puro recreio. Era nato em meu pai “fazer cirurgia” em qualquer objeto carente de conserto ou transformação, do mais simples ao mais complexo, do antigo ao moderno. Era seu hobby desmontar por inteiro qualquer tipo de aparelho para recuperar-lhe o dano sofrido. Ao chegar do trabalho, lia nas folhas das árvores as intenções de bom tempo sem raios, para dar vazão à arte de desmontar e remontar para melhor ficar.

Na época, o rádio tinha grande importância no cenário doméstico. Porém, estava sujeito a contrair chiados indesejados que contaminavam a audição de músicas, notícias e futebol. E vez ou outra, chegava um romeiro com o rádio enfaixado para o atendimento ambulatorial. Lá nos fins de tarde, as vísceras de cada caixa eram expostas sobre o curtido couro do risk-rabisk para receber do exímio curador a devida solda ou enxertos, e voltar aos braços do dono tinindo como novo.

Mesmo em qualquer festejo entre amigos, meu pai não desligava o apurado ouvido. O faro para isolar um vírus causador de estragos, corria-lhe no lugar do sangue. Um ruído estranho ao funcionamento de qualquer objeto ganhava o seu interesse e o enfermo acabava recebendo uma “senha” (ou uma sina?) para ser desmanchado e consertado. Assim, com a perícia a escorre-lhe dos dedos, ajudava amigos e vizinhos, conhecidos e desconhecidos, parentes e aderentes.

Tempos depois, as televisões com tubos de imagem passaram pelas habilidosas mãos do cirurgião a conferir-lhes imagem limpa, sem chuviscos. Antes dos exames laboratoriais, o tino rastreador do especialista detectava a enfermidade e a prescrição segura para a cura. Na bancada de operação para extração do enguiço, o gabinete da TV hibernava oco, anestesiado, à espera das dezenas de peças abertas e separadas para os acertos devidos. Bisturi, digo, instrumentos a postos, e mais uma delicada e complicada intervenção se realizava com precisão cirúrgica, coroada de sucessos. Saía o ex-infectado já convalescido por uma overdose de beleza e funcionalidade, com um jeito de quem assobia uma dúzia de pavulagens.

E tal como os outros, os novos eletrônicos que se seguiram com o avançar da tecnologia, ao apanharem qualquer virose na vizinhança, tinham os cuidados garantidos pelo Sr. João em suas horas de folga. Estava decretada a desagregação de todos os circuitos e fiações numa poça de pecinhas para estudar-lhes a anatomia e analisar as condições físicas de cada item, justo para evitar aqueles males futuros que geram lamentos pela falta do checkup no primeiro indício de falha.

Um Fusca era seu quase bicho de estimação, seu primeiro parceiro nas andanças para o trabalho. Dispensava ao seu maior paciente tratamento prioritário na ordem da fila de curativos e tratamentos, afinal conhecia cada órgão do velho carango. E assim, troca de velas, platô, disco, e outros agrados, se operavam no circuito doméstico com terapia caseira. Ruídos anormais no motor, menores que fossem, recebiam a sentença do desmonte. A partir daí começava a diversão. Suspensa, a carroceria vazia espiava, pacientemente, as centenas de pecinhas arrumadas em grupos no chão da garagem. Haveria o mestre de empregar seu olho clínico em cada parte. Depois de horas gastas com raios X em cada seção, seguia-se a assepsia e cauterizações indicadas a sarar as deficiências, até que o processo de remonte se completasse com inteira aprovação. Até que seu cenho, calejado de gestos mansos e firmes, esboçasse um meio-sorriso com a obra pronta.

Por essa época - já tinha o tempo corrido alguns anos - meu filho caçula ganhou o primeiro brinquedo mais elaborado, depois do chocalho - uma miniatura metálica de carro esportivo - para entreter seus dois anos de vivacidade alimentada por energia em alta frequência. Depois de algumas experiências barulhentas pela casa, um silêncio demorado me acendeu um pisca de alerta na mente. Corri a ver o que se passava, e lá estava ele, absorto, com olhar de gente grande, segurando o carrinho completamente desmantelado, dissecando cada pedaço. Daí em diante, salpicado de resquícios genéticos entranhados nos poros, o pequeno submetia todos os brinquedos, irremediavelmente, ao “exame” dos componentes internos e suas respectivas engenharias.

Meses depois, num certo dia nublado pelas cores sombrias do suspense, toda a família foi surpreendida com um imprevisível defeito no peito do meu pai. O coração pedia arrego. Levado às pressas para um centro mais avançado do País, a Misericórdia Divina permitiu que o tórax fosse aberto, órgãos, aurículas e ventrículos expostos para pontes, enxertos, soldas e outras costuras a lhe restaurar a integridade de toda a região coberta pelos domínios do coração. Desta vez foi o Criador quem, mexendo com as peças gastas naquele barro teimoso, soprou-lhe uma segunda vida e devolveu a regularidade de seu caminhar na Terra, apagando todas os vestígios e sequelas da crise cardíaca.

E assim, com uma garra a se espraiar triunfante, retornou ao prazer de ajudar toda gente, por mais uma geração, com a disposição a tiracolo, intenso e resistente, como se de aço fosse feito.

Até que um dia, aos oitenta e um anos, cheio de entusiasmo pela vida, lúcido e vigoroso, recebeu inesperadamente uma intimação mais que urgente do Altíssimo para comparecer ao céu. Era chegado o entardecer de todos os seus abraços. Penso que havia muito trabalho lá em cima a fazer e o Senhor Deus contava com o seu auxílio, pois subitamente meu pai mudou o domicílio para um endereço celestial, certamente em cumprimento de nova missão. Embora a chaga pela sua ausência interminável me seja caiada de sangue, vívido é o exemplo deixado com o seu proceder como valente guerreiro na trilha do bem, ao longo das estações.  

Por tudo que vivi e aprendi rente aos seus dias, restou uma chancela gravada em meu peito, ao peso da força de um sinete em brasa: “Ainda que agruras da vida venham a me desmanchar em lágrimas ou despedaçar minhas convicções, sei que posso reunir os cacos, remontar as quebras com mais fibra e seguir em frente, mais forte que nunca”. E hei de lembrar disso, sempre - quanto o meu sempre durar - está cunhado em meu coração em lugar reservado às memórias do meu pai. 



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Numa coincidência singular, minha irmã e eu escrevemos sobre 
o mesmo tema, ao mesmo tempo, sem prévio acordo. 
Segue o link do site da poetisa Rosa Clement:
http://www.sumauma.net/amazonian/cronicas/cronicas-pai.html
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CRÔNICA 50
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4 comentários:

  1. Não há como não se emocionar com esse conto, uma vez que fui agraciado com a oportunidade de ser neto do Seu João! Lembro bem das ferramentas dele sempre dispostas e a disposição. É inesquecível aquele jeito de prontidão e o coração receptivo. O meu avô era o tom da altivez. Parecia um coronel. Coluna reta e postura impecável. Acho que tinha perto de um metro e noventa. Me lembrava muito aquelas estátuas de bronze que ficam nas praças a homenagear personagens históricos. Nem sempre econômico nas palavras...aqui e ali conversava alguma coisa. Interagir com os personagens dos filmes, reprovando comportamentos eticamente censuráveis e encorajando atos dignos, como se eles pudessem ouvir de dentro da televisão e mudar suas atitudes era, talvez, o que mais me intrigava no vovô. O meu avô se transformou, para mim, em uma personalidade marcante e inesquecível. Lá, onde ele tá, agora, tenho certeza de que está "remontado" ainda melhor, pois certamente compreende mais as nossas humanas fraquezas. Que bom relembrar e falar dele. Êta saudades!!!

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  2. Ainda que debilitada, como estou agora, não pude deixar de ler seu conto.
    Como disse outro dia, você eterniza o que escreve. Maravilhoso é conhecer seu pai por meio desta arte. É lindo o conto, emocionante, ainda mais sabendo que os nossos queridos que já se foram deixam marcas em nós, até mesmo as genéticas, como são notórias no Alysson. Se todos registrassem a história dos entes queridos que já não estão mais entre nós, provavelmente notaríamos o quanto eles estão presentes, seja na personalidade, caráter, costumes, preferências.
    É importante honrar essa memória!
    Lindo, lindo e lindo!

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  3. Umas das primeiras coisas que aprendi a escrever e ler foram: avô e avó. Isso foi antes mesmo de saber escrever casa e o resto do b-a-bá. E eu gostava muito de juntar essas letras, A-V-O, e lê-las, sem me dar conta que ainda existiam milhares de combinações possíveis. Com o passar do tempo, aprendi a combinar quaisquer letras e formar qualquer palavra. Hoje, quando escrevo as letras A,V,O, em sequência, combino, involutariamente, as letras S,A,U,D,A,D,E,S e os meus olhos se enchem de lágrimas.

    Mãe, linda lembrança, lindo texto. Parabéns.

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  4. Seu João já se foi. Empatia, compaixão e preocupação pela família é o legado que ele deixou. Após ler o relato, o sentimento ficou tão forte em mim. Eu tive o prazer de conhecer esse homem com todas as suas virtudes e também com seus limites. O pai, que orientou para os filhos o caminho, feito de lutas e incertezas, mas também de muitas esperanças e sonhos. Parabéns foi muito emocionante.

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