quarta-feira, 24 de agosto de 2011

À PROCURA DE MIM

A noite se recolheu antes da hora em busca de prados mais amenos. Para descanso, talvez, dos seguidos plantões no calor abrasante de Agosto. Ao sair à francesa, desadvertida pela pressa, levou minha sombra consigo. E, por engano, a minha identidade foi junto. Sem identidade não sei de mim, nem das minhas memórias, nem do meu destino, até a próxima noite mas devolverem. Mas um dia inteiro é muito tempo para ser ninguém.

Moro neste quintal faz tempo, mas fiquei a ermo à procura de mim - uma planta sem prenome ou sobrenome. Nenhum nome igual ao meu me chama. Ninguém acode às minhas incertezas e nem mesmo os sabiás sabem quem sou, já que não trago uma sombra comigo e não porto nada que ateste minha natureza ou meus atributos. Não há poesia que me ajude. Nesse semiescuro que precede o nascente, me resta um pouco tempo para achar minha origem, antes de a claridade chegar. Sequer posso expressar minha saudação ao Sol sem uma identidade.

Tenho a visão em branco quando tento emergir meu retrato, mas para outras lembranças, as cores são nítidas na minha íris. Debaixo dos olhos já prendi todas as primaveras. E guardei, também, breves arco-íris em dias calmos, em que com a copa nas nuvens sonhava um futuro, do tipo dar a volta ao mundo pelo mar. Nem sei se existe mar, mas sei de como os poemas entoados ao mar fervilhavam minha seiva nos veios. Sei de como a chuva ocupava os espaços vazios da minha pele, de como eu via a lua por entre os dedos, de como embalava berços de passarinhos-bebês em meus braços, até que soubessem voar por asas próprias. Sei que, sem ser a mesma de sempre, sou sempre a mesma,  mas, por ora, não sei quem eu sou.

Talvez eu tivesse um vestígio da minha procedência se pedisse de volta às andorinhas, as histórias que lhes dei nas noites sossegadas, quando se aqueciam no meu colo nos frientos dias de chuva. Entre tantas aventuras que lhes narrei durante nossas conversas ao pé do ouvido, quem sabe, se lembram sobre uma plaquinha com registro de família presenteada a todas as espécies verdes neste verde espaço pelo jardineiro que por aqui passou... Mas as delicadas aves anunciantes do verão não sabem de cor nenhum conto, porque distribuem suas memórias com as sementes que transportam na migração. Aqueles relatos que nos divertiram noite adentro no frio invernal, não receberam guarda, e sim o natural descarte em algum lugar sem mapa.

As magnólias, há pouco, me contaram que sou capaz de garoar orvalho. E de chover sombra. Todas as ervas reinventam a mesma versão quando me abraçam em consolo, desde que a noite hoje se foi mais cedo. Esperava que me falassem de histórias felizes. Para eu entender por que tantas folhas me vestem o corpo. Ou por que de minhas costas descai uma echarpe tecida em fina ramagem cravejada de orquídeas. E em meus tornozelos sandálias de cipós trançados parecem parte de mim. Não reconheço tão vistosa indumentária que me deixa grande, diferente, poderosa, mas sinto que me agrada ser quem sou, seja lá quem eu seja.  

Apoio os pés no chão para me situar e sinto minhas raízes crescerem para baixo cada vez mais fundo, ávidas pela nutrição da Mãe Terra. Meu ventre está camuflado de verde e meus dentes desprendem aroma de hortelã. Meus poros exalam cheiro de mato ligeiramente cítrico, embora goste de banhar-me com ramos de sândalo e almíscar. Sob os meus cabelos longos, sanhaçus se agasalham cochilando no meu ombro. Asas sedentas de afagos, plumas em ponto de afeto... Vejo cascas macias e amadeiradas a cobrirem minha tez no mormaço desta madrugada e heras viçosas a crescer-me nas raias do corpo. As extremidades dos meus dedos me rebentam novos brotos que me prometem fazer maior e mais forte, e giram gentilmente o meu norte para a luz. Já percebi, sou dependente de luz. E da energia que dá vida aos bichinhos, às flores, às ervas, aos humanos, à terra, à água, ao mar, ao céu... e que eu chamo de Deus.

Reparei, neste instante, que tenho um coração. Coberto de musgo para disfarçar sentimentos. Por culpa dele me encantei com uma floresta extensa de seres humanos que por mim passaram em todas as estações. Criaturas interessantes, mas insondáveis em seu pensar. Nunca soube se, como eu,   carecem dos raios solares para a fotossíntese. Sei apenas que meu peito é marcado de cicatrizes por sofrer de um hábito deplorável de ternura aos humanos. Antes era só ternura, com risco de amor. Depois ternura e medo. A minha inquietação agora tem o nome dos humanos dentro, pois já só tenho medo. Um medo por dentro da terra, da parte da humanidade predadora da Natureza.

A cada geração desses seres que compõem a raça humana, um tanto de espíritos impuros devasta vidas, sem conta, no reino vegetal e deixa meio mundo de natureza silvestre em agonia. Perigos assombrados de ataques  manejados pela "espécie animal inteligente", que desertam um bosque inteiro cheio de vida centenária. Essas maldades riscam abalos em todo ser vivo, e em mim dói mais, porque o coração sabe de onde vem as feridas. Feridas doídas, calcadas por tantos abates aos organismos verdes - meus semelhantes - dotados de sensibilidade.  Pesadelos que ameaçam a minha integridade física, assustam-me e calam-me a fala. Estremecem a minha confiança, e me impelem, por segurança, num cansado gesto, a só pronunciar silêncios.

Ainda penso ao coração deixar um naco de terra tingida de praia e mar onde, semeando a esperança, atraia a alegria a fazer morada. Quem sabe eu volte a contar às margaridas nas rochas sobre o mistério dos dias nublados. Quem sabe eu volte a crer nos homens e fale da boa gente que ao pé do meu abrigo, dias atrás de outros dias, trazia o coração na boca. Quem sabe eu volte a sonhar em alçar o topo do mundo. Com ramas nos braços abertos aos ares úmidos de Agosto, procurar marés mais altas. Pensar em voar por cima d’água e ver além dos muros e telhados, me extasiar com as paisagens espelhadas nos rostos dos homens de bem. Sentir o impulso de sorrir, como se dançar ao vento fosse a roupa escolhida ao romper de manhãs pintadas de azul.

Continuo à procura de mim. Algo me dirá de onde vim e para onde vou. Preciso me apressar em decifrar meu DNA. Uma coruja em descanso enfeita uma ranhura em minha costela e coça a orelha num botão pendente num galho mais perto. Não havia notado que tinha tantos botões prestes a eclodir, recheados de frutinhos. Mais abaixo, rente ao solo, a planta dos meus pés floresceu antes que o dia levantasse as pálpebras. E nestas flores com a minha assinatura, finalmente descobri minhas digitais: eu sou uma árvore prenhe de afetividades.

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Minha homenagem à Cariota - frondosa árvore do meu quintal -
por ser quase Setembro - seu aniversário.
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CRÔNICA 48
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6 comentários:

  1. Lá na pagina anterior tinha um link que permitia vir aqui nessa outra pagina para postar um comentário. Confesso que pensei muito antes de clicar para postar, afinal, e um risco oferecer qualquer comentário quando o objeto e uma obra! Algo como um aprendiz tecendo uma critica ao seu mestre. Aqui, minha sensibilidade me autoriza dizer, ainda que comentar seja uma audácia, que o texto, por meio de um dominio impar da lingua portuguesa, conforma genialidade, ternura e poesia. Particularmente, emociona a delicadeza do pensar da arvore! Parabéns!!! Gostei imensamente. A arte lhe e inerente.

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  2. Regina,

    quanta ternura...como é divina a sua capacidade de provocar emoçoes em nós,pobres mortais.
    A sua obra de arte tem um grande poder de sensibilizar-nos, principalmente quanto às questões ambientais. Fiquei me sentindo um lixo, enquanto ser humano...De fato, somos verdadeiros predadores da natureza, enquanto deveriamos viver em harmonia com ela...lamentável!
    Parabens mais uma vez, querida!

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  3. Pois num é que eu estava curioso para saber quem era? Ainda bem que esta querida árvore recuperou a memória e me deixou aliviado.
    Parabéns pelo conto. Bjsss.

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  4. Querida Regina,

    Eu sei que já lá se foram 5 meses desde que escreveu esta crônica. À época, eu a li mas não externei o quanto apaixonante ela foi. Ela ficou na minha memória de maneira tão forte que a procurei novamente agora pra te dizer: Você não existe, amiga!
    As imagens que você consegue formar nas nossas almas, são dignas de pinturas em óleo para serem admiradas com os sentimentos da visão.
    Confesso, Regina, que você consegue fazer com as palavras os mesmos efeitos que Salvador Dali nos presenteou com suas telas surrealistas.

    Obrigada, amiga! Você é sensacional...!
    Beijos

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  5. Ola Querida Regina!

    Como tudo que voce escreve, me deixa profundamente emocionada com tamanha sensibilidade!

    Gostaria de ser o broto da palmeira pra poder te surpreender com um verde diferente a ponto de te fazer suspirar.

    Hj. andei pelo quintal e fotografei o chao do jambeiro, roseo e fiquei ali alguns momentos, admirando a simplicidade da natureza e o quanto ela nos enche de sonhos e cores.

    Adorei querida e vou visitar mais vezes seu blog.
    Bjs. recheados de admiracao e carinho.
    Jo
    querida

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  6. Querida Regina!

    Queria ser o broto verde da palmeira, para sentir voce perder o folego ao percebe-lo.

    Sei que voce tem a sensibilidade que as plantas precisam para se comunicarem. Sensacional.Cada frase me trazia lagrimas aos olhos, e o coracao batia rapido.

    Hj. acordei cedo e fiquei minutos perplexa, observando o chao do jambeiro, era tao exuberante seu caule e na mesma proporcao tao frageis suas flores roseas....

    Vou te visitar mais vezes pra poder inebriar minhalma com a doucura de suas palavras.
    Bjs. Parabens.

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