segunda-feira, 25 de julho de 2011

ÚTIL TODA A VIDA


Levantei muito cedo, numa hora em que a madrugada ainda vela o sono dos viventes sob o piscar da estrela D’Alva. Insones, as meninas dos olhos teimam em vigiar a chegada da manhã, à espera daquele espetáculo de efeitos especiais luminosos, alumiando o acordar das pestanas do dia. Na minha varanda, alguns pássaros despertadores aturam os ensaios do meu pensamento rabiscando palavras e escrevinhando divagações. Tudo é alumbramento no nascer do Astro-Rei que, em aparição ostentosa, rutila o brilho do diamante nas diminutas gotas de sereno a pender das folhas. E a Natureza prossegue no seu ritual cíclico de sustentação do Planeta. Vejo uma nova oportunidade de nos vestirmos de vida e de recriarmos um estar vivo atuante, útil, vibrante.

Debruçada no parapeito, vagueio pelo quintal dos meus botões, onde tenho uma posição particular frente ao mundo dos vivos sobre a humana criatura em seu caminhar na Terra. A mim, sugere o homem ser uma produção em fase de acabamento até que atinja o estágio de evolução necessária. Polimentos desbastam a pedra bruta em alguns exemplares da raça humana no rolar dos dias, enquanto outros tipos retornam à Idade da Pedra, escareando as cavernas dos seus retrocessos. É imperioso o avançar, o projetar-se à frente, ainda que hesitante sobre a corda bamba. Isso é determinante para quem se sente ou se diz, supostamente, racional e vívido, detentor de acuidade e lucidez.  

Dependendo do barro com que nos construímos, teremos ou não, lá no final do barbante da vida, quando impossível for manter a verticalidade do esqueleto, respostas às inevitáveis perguntas: O que eu fiz? Que diferença trouxe para este mundo que me emprestou morada? Realizei algo? Que ajuda prestei? O que fiz pelo país, pelos outros e por mim? Para muitos, haverá um sol no coração, como um plasma vivificante, mas para outro tanto, a escuridão ecoará um visceral silêncio.

Porque viver é um risco de curta duração, e impõe uma marcha de mão única, tal como um rio, sempre avançando até chegar à foz. Não há tempo sobrante para voltar atrás e desfazer qualquer fragmento vivido.

A cada instante, o tempo vai nos soprando o estridente recado de que a areia da nossa ampulheta está se esvaindo, mas insistimos em desviar tal linguagem, para um surdo e conveniente “depois”: depois eu faço, depois eu vejo, depois eu ajudo, depois eu digo...

O bicho-homem foi moldado para ser gregário e interagir com os seus iguais. Condenado ao pensar e ao sentir, bebe no cálice do livre arbítrio as escolhas para conviver com as diferenças e galgar o patamar de um ser humano melhor. Assim são pinceladas as cores das leis naturais.

Mas, na prática, diuturnamente, esse humano ser alimenta o vicioso ciclo da busca pelos mesmos fúteis objetivos. Sai desenfreado numa corrida, focado, ininterruptamente, na mesma distração: a luta incessante pelo prazer do ter, pelo dinheiro como fim em si mesmo. E enquanto mantém a cabeça voltada a beber nessa fonte, deixa de olhar as oportunidades de ser útil, durante os dias de uma vida inteira. Com os remos da ambição, navega em águas revoltas de paixões, completamente esquecido de que, a qualquer momento, o fio entre o nascer e o morrer vai se romper, frente aos umbrais de sua derradeira morada.

Isso me lembra uma fábula antiga, onde um homem muito rico e muito ocupado, morreu e foi recebido no céu. Em vida, foi pouco pecador com os seus haveres, mas tornou-se displicente com a lavoura de suas plantações espirituais. Deixou o coração em terra árida, dessas terras baldias que ninguém lavra. O Anjo guardião conduziu-o por várias alamedas e foi-lhe mostrando as moradias. Passaram por uma casa com linda fachada e belos jardins circulando um riacho límpido sobre um leito raso de seixos. O homem perguntou, curioso: - Quem mora aí? O Anjo respondeu: - É o Ronaldo, aquele seu motorista que morreu no ano passado. O homem se pôs a pasmar, matutando: "Puxa! O Ronaldo tem uma casa milionária! Aqui deve ser muito bom!" Mais adiante, num gramado extenso, pontuado por palmeiras, deparou-se com uma outra edificação, ainda mais bonita, mais glamourosa, e ele indagou: - E aqui, quem mora? O Anjo respondeu: - Aqui é a casa da Rosalina, aquela que foi sua cozinheira. O homem ficou a ver crescer-lhe um mar no peito, presumindo que, tendo seus empregados magníficas residências, sua habitação deveria ser, pelo menos, nos moldes de um palácio. Estava ansioso por vê-la. Nisso, o Anjo parou diante de um barraco construído com tábuas toscas e deterioradas, cobertura de palha vazada sobre moirões carcomidos. E estava frio naquele lado do mundo, com a geada a entranhar-se no solo. Apontando o Anjo para a rústica cabana, disse: - Esta é a sua casa! O homem, sentindo nevar-se da boca ao coração, explodiu indignado: - Como é possível? Eu vi, no trajeto, construções grandiosas! - Sim - respondeu o Anjo -, mas nós construímos apenas a casa. O material é selecionado e enviado por vocês mesmos. Você só enviou isso! O homem queria fechar os olhos e fugir para outra paisagem. Queria emprenhar sentimentos de reparos. Mas, irremediavelmente tarde, seu prazo havia exaurido na Terra.

Cabe a cada um descobrir a sua verdadeira utilidade para este mundo e construir a sua contribuição durante sua existência. De forma holística, eu diria, para deixar o mundo um pouco melhor do que encontrou ao chegar. Útil por toda a vida, mesmo em pequenos gestos, como aquele de dar e receber com a mão em concha, enxergar além do próprio umbigo, considerar o todo ao seu redor.

O Sábio Criador do Universo nos legou a inteligência para absorvermos cada avanço da contagem do tempo e com isso aprendermos a crescer em todos sentidos. Deixou implantadas em nosso DNA, todas as sementes das capacidades humanas para brotarem se despertadas, para emergirem se evocadas em grandes ou pequenos feitos. Adicionou uma dose extra de saúde e vigor, projetou um intervalo de validade suficiente e, ao dar-nos o sopro da vida, sutilmente nos sussurrou: “Faça a sua parte, filho. Ficarei à sua espera”. A vida e a morte são o verso e o anverso da mesma medalha a ser devolvida ao Criador Onipotente. Carece darmos o devido lustre na efígie do nosso viver para fazermos a diferença no brilho sob a Luz.

Aqui, o sol morno da manhã começa a me arder nos poros. Recolho, às pressas, minhas notas virtuais para a tessitura do conto do Blog. Levo a força e a coragem sob a epiderme da pele, e a cabeça se aventura no terreno da esperança.

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CRÔNICA 47
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4 comentários:

  1. Saudações!!! Sua arte, quero dizer, seus contos, digo, suas mensagens...ah..tão difícil designar o que você deixa gratuitamente para nós, leitores...enfim, seus "escritos" entram pelos olhos como a luz e acendem a alma. Esse conto, "Oportunidade de ser útil", tocou-me profundamente. Ao observar minha vida, tomando como referência a sua mensagem, notei que dedico muita energia apenas ao trabalho e ao repouso, pois adiei o melhoramento espiritual, adiei a prática de esporte, adiei o estudo de um instrumento musical, etc. Contudo, não há como não acolher a inafastável verdade que é o passar do tempo..e com ele, a vida passa...!! Rendo-me. Tentarei me educar para agregar a mim espiritualidade, produtividade e doação. Ainda em relação ao conto...não posso deixar de comentar...causa espanto a pureza e elevação da sua mensagem..é como se você não fosse humana! Parabéns, ainda que essa palavra não seja suficiente para você. Ah..quero logo outro conto!!!

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  2. Este é um daqueles contos difíceis de ler, porque são espelhos sem distorções...que duro!
    Reportei-me a um tempo distante, onde era uma adolescente com vontade de mudar o mundo...não admitia a ideia de ser mais um no universo, mais um ser que passou despercebido...não!
    É doloroso é perceber como as coisas mudam, os caminhos necessários distanciam-se dos ideais de transformação. Como este mundo dita o individualismo (o ser e ter, como você disse). Paro, a partir deste escrito, para refletir os valores deixados para trás...É indubitavelmente necessário buscar realizar sonhos pessoais, mas não se pode esquecer a primeira razão de existirmos: levar o bem, ser útil, deixar a marca de bondade em casa ser que conosco interage!

    Obrigada, querida amiga, pela disposição que você tem em iluminar a todos nós com a sua arte. Tenho certeza que o Pai celestial olha e e sorri, quando olha você fazendo tanto bem para nós, pobres mortais!
    Você é a prova que sempre é possível fazer o bem...Usar nossos talentos para mehorar a vida do próximo!O blog diz tudo.

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  3. Concordo em gênero número e grau com o que foi dito neste conto.
    É impressionante ver as pessoas gastando mal o seu tempo. Seja ganhando dinheiro ou o gastando com prazeres comerciais.
    Geralmente quando estão à beira da morte, querem mais tempo. Temp para ganhar ou gastar mais dinheiro?
    Não. É para passar mais tempo com a família e pessoas queridas.
    Infelizmente, é nessa hora que as pessoas valorizam a vida.

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  4. Uma ótima lição, que bom compartilhar conosco. Quando centralizamos nossas vidas em ajudarmos outras pessoas, estamos vivendo de verdade. Para atingir a felicidade precisamos deixar que o espírito Santo de Deus haja dentro de nós. E nesse estado de ser que o amor de Jesus lhe capacita para escrever coisas que tornam nossos corações livre para sermos útil. Que o Senhor dos Exércitos lhe abençoe. Parabéns me comoveu.

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