quarta-feira, 9 de março de 2011

EXÓTICOS MEMBROS DO ALFABETO

Eu sou o Dáblio e represento meus irmãos Ká e Ípsilon – exóticos novos membros do alfabeto. Estamos a publicar, neste Blog, um manifesto solene de indisfarçável afeição por esta rica terra, banhada por um idioma belo e sem fronteiras. Numa análise sintética, pontuamos as nossas aventuras a buscar-nos um futuro no sistema de escrita no Brasil, desses futuros que se fazem de sonhos conquistados e sorrisos plantados na boca.

Outrora, os nossos passaportes para transitar pela grafia da Língua Portuguesa, eram do tipo "turista com acesso restrito". Finalmente, com a reforma ortográfica, nós, os estrangeiros K, W e Y, fomos oficializados cidadãos brasileiros, somos agora vinte e seis letras ao todo, na mesma família. No anterior Formulário Ortográfico de 1943, apesar de constar vinte e seis lugares no alfabeto português, ficávamos separados em duas classes: vinte e três letras fundamentais, e três letras especiais liberadas somente para usos especiais. Doravante, pela força do novo pacto, todos estamos incluídos num pacote só, deixamos de ser os três especiais na listagem das letras e passamos a ocupar a nossa posição na ordenação sequencial do conjunto do abecedário. Ainda que em estreito espaço linear, podemos agora florir sentimentos e chover abraços.

Desde aquele ano de 1943, ficamos isolados na solidão de um vagão descarrilado, naquela chamada classe especial, separados dos outros vinte e três irmãos que ocuparam o vagão principal por serem titulares da classe fundamental. Naquele período, nos sentíamos entre parênteses, imigrantes ilegais, aves fora do ninho, principalmente quando posávamos para impressão gráfica com outras letras, formando os estrangeirismos. E assim vivemos por tempos vazios, subjugados pelo preconceito, tachados de gringos, acusados de uma pronúncia de difícil dicção. Os brasileiros se mostravam arredios e nos olhavam de esguelha, com indiferença. Ainda assim, permanecemos por perto, infiltrados no vocabulário, tal o nosso envolvimento afetivo com a gramática, tal as nossas raízes já ramificadas.

Mas com o novo Acordo finalmente vingado, saímos do confinamento para a glória. Na nossa recente inclusão no abecedário, fomos recebidos por todas as letras com hospitaleiros fogos de asteriscos em clima de substantiva cordialidade. As consoantes e as vogais, amáveis e diligentes, nos presentearam com a mais autêntica solidariedade. Temos ciência de que não somos letras nativas, mas já é um conforto saber que não somos um apêndice, e sim, personagens do índice, porque fomos adotados legalmente. Assim, os brasileiros já podem conviver conosco sem desconforto e conhecer mais sobre nós. Somos como aves que das jornadas migratórias retornaram como partiram, a mesma plumagem, as mesmas cores, as mesmas batidas no peito. E por assim dizer, nas nossas idas e vindas, permanecemos como sempre: o meu irmão Ípsilon é uma vogal, o Ká é uma consoante, ambos procedentes do discreto grego. E eu, o Dáblio, importado de outras línguas, sou híbrido, posso ter as duas feições, dependendo da pronúncia na língua original: se alemã, sou consoante; se inglesa, sou vogal. Nós três vivenciamos, desde o mais longíquo passado, cordiais relações com o impetuoso latim. Agora, habitamos todos a mesma casa, formamos um clã.

E estamos inteirados de tudo, não somos cegos do mundo. Nossos caracteres têm sarcófagos de memórias que soletram todas as nossas perdas de espaço: já desde aqueles tempos do Formulário de 43, desejávamos um longe mais perto dos outros sinais na escrita, quando sofremos o golpe das mudanças de palavras que até então nos empregavam, substituindo o meu irmão Y por I, o meu irmão K por C e QU, e eu, por V ou U. Doeu nas vísceras mas, por morrermos de amores por esta Língua, cauterizamos a ferida. Sabemos, também, que atualmente estamos impedidos de prosperar qualquer tentativa de novos vocábulos na linguagem, além de não podemos interferir em formas já adaptadas ao português com o que perdemos terreno para palavras estrangeiras já aportuguesadas, como o yene que passou a ser iene. Embora cobertos de emplastros, conseguimos tudo superar e hoje só tecemos dias felizes, desses a crescerem brotos floridos no coração.

Depois de regras tão rígidas marcando o nosso passo, resta-nos um restrito direito de circulação pelas veredas da ortografia. Enquanto as demais letras são livres para pluralizar os arranjos de sílabas, nós temos uma atividade singular: só podemos aparecer, unicamente, nos casos específicos: em siglas, símbolos ou unidades de medida internacional; em nomes próprios de lugar ou de pessoas, originários de outra língua e derivados; em termos estrangeiros e seus derivados. Assim sendo, nossa permissão para ir e vir, converge para as palavras já existentes na fala e na escrita corrente, dentro da reduzida galeria de nomes estrangeiros autorizados pelo Acordo Ortográfico. Esta é a herança que nos coube e mesmo que aspirássemos a voos mais altos, abraçamos a nossa tarefa, circunflexos.

E assim foi a odisseia por que passamos até os ajustes finais desse último Acordo Ortográfico. Enquanto aguardávamos a vigência, meus dois irmãos e eu ardemos em febre, a quase verter sangue pelas veias, se sangue tivéssemos. De intensa avidez se cobriu a nossa torcida pela concordância dos signatários aos termos do instrumento que estava sob a regência dos linguistas e diplomatas dos países interessados. Proverbiais embates a estorvar a consensualidade dessa reforma, colocavam nossa causa em suspense. Nasciam-nos dos poros riachos de adrenalina. Tínhamos ânsia em ocupar nossos assentos e estávamos atados a um limiar. Motivos políticos, econômicos e outros ocultos em camadas subjacentes, levavam as discussões a enredos infindos, sem soluções à vista, numa concorrência feroz de complexos de superioridade ou de legitimidade. A turbulência que cercou as negociações entre os homens para a unificação da escrita do português em todo o mundo onde nós estamos espalhados, nos lembrou uma narrativa, no início dos tempos, contada nas Escrituras, quando em toda a Terra havia apenas uma só maneira de falar: o episódio da Torre de Babel, construída na Babilônia pelos descendentes de Noé, com a intenção de eternizar seus nomes e fazê-la tão alta que alcançasse o céu, numa afronta ao Criador. Tanta soberba provocou a ira de Deus que, para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra. Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o Todo-Poderoso a linguagem de toda a Terra, e dali os dispersou.

Do lado de cá do á-bê-cê, não conhecemos o peso de ser alguém de carne e osso, mas enxergamos que muitos humanos, hoje, carregam a mesma soberba daqueles povos antigos para se sobrepor a tudo e a todos no mundo real, sem ética mínima. Aplicam-se desvairadamente à linguagem dos mandos e desmandos e sobem ao cume das vaidades, a humilhar qualquer um, por causa de um carro novo e mais caro, um cargo mais elevado, um quinhão de dinheiro recebido, um título galgado. Outros constroem torres gigantescas de arrogância para abrigar seu ego inchado da presunção de subir até o topo mais alto das riquezas acumuladas, aniquilando quem se interponha no caminho. Esses pobres mortais desafiam céus e terra, porque se acham acima do bem e do mal. Esquecem que a qualquer momento, o Altíssimo poderá lhes calar a voz e lhes desempossar do corpo, lhes destituir deste mundo para a justa pesagem dos feitos e correspondente paga. Felizmente somos apenas letras que representam fonemas de uma língua e recebemos em 2009 a honra de compor, perfilados, o alfabeto da língua românica oficial do Brasil - o alfabeto português que recita, em prosa e verso, a Língua de Camões.
  

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CRÔNICA 43
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4 comentários:

  1. Muito muito bom o conto! Interessantíssimo...Mais uma vez, arte escrita pura! Parabéns. Bom, caros Ká, dáblio e ípsilon...sejam bem vindos...se antes eram "importados" saibam que geralmente o produto importado é bom e a gente fica meio metido só por usar!! Agora que são nacionalizados, fica comprovada a autenticidade e o uso. Liga para a restrição não... assim vocês continuam chiques..encarem como um uso seleto..para poucos...pobre do A...que aparece em tudo que é canto..também, é um artigo definido!! Enfim, o nosso vocabulário ficou foi mais interessante..sem preconceito e com mente aberta. Parabéns mais uma vez pela leveza, arte, ARTE MESMO!!!! E até o próximo conto.

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  2. Yrado Kara! Walew :-) Sejam bem vindos K,W e Y :-D.

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  3. Excelente conto!

    Reitero minha admiração pela sua capacidade singular de escrever, encantar e levar seus humildes leitores a apreciação do produto da sua inteligëncia e sabedoria.

    O conto é uma fascinate dança metalinguística!

    Beijos

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  4. Querido e bemvindo amigo Sr. Dáblio,

    Aprendi, desde criança, a tratar como “senhor” os mais velhos, experientes ou socialmente mais destacados. Vejo que sua autobiografia o fez bem vindo e necessário ao alfabeto português desde muitos anos passados.

    Como o senhor mesmo narrou, a língua portuguesa tem passado por tantos ajustes fonéticos, gramaticais e alfabéticos, que deixaram-no e aos nossos conhecidos Ípsilon e Ká quase que desnecessários. Claro que restam palavras, termos e nomes que não sobrevivem sem vocês, mas a grande maioria passou por uma infeliz transformação chamada “aportuguesamento”. Nesse balé, vocês ficaram um tanto quanto relegados.

    É com dor no coração, amigo Dáblio, que sinto vossa festiva chegada ao abecedário, como jogadores de futebol que estavam no banco de reservas e só entravam em campo em situações breves e extremamente necessárias. Espero que nos acostumemos a vocês, como disse, perfilados no abecedário, mas que não seja simplesmente na forma (como na foto antes do jogo) mas no conteúdo (participando efetivamente da formação de nossas palavras, mostrando-nos o DNA de suas formações).

    Forte abraço, amigo e saiba que sua autobiografia foi tão fantásticamente descritiva e criativa, que me lembrou demais uma amiga do coração que é também uma fonte de capacidade e criatividade.

    Boa sorte de volta à nossa língua, agora de forma “titular”

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