sábado, 26 de março de 2011

ARCA DE MEMÓRIAS

Um pequeno baú em pátina cor de alfazema guarda objetos que contam as histórias da minha infância. Imagino que todo ser humano com um naco de sensibilidade mantém consigo uma caixa física ou virtual com relíquias antigas. No andar da minha carruagem ao longo dos anos, carrego comigo aquele bauzinho fechado a sete chaves. Tinha receio de abri-lo porque me negava calcar as chagas abertas pelo afastamento dos meus pais, que sem o meu consentimento, mudaram de endereço para o Paraíso, atrás do céu, um pouco antes de onde o sol se põe. Certamente, a exposição do conteúdo daquele relicário causaria o risco de me trazer essa dor à tona dos olhos, como se ilegível fosse a irreversão do passado.

Dia desses chuvosos que nos prende em casa para um retiro, resolvi destravar os fechos para encarar de frente as lembranças. Nas mãos, o coração pesado de ausências abre a tampa da pequena arca de memórias e fatalmente um pedaço de mim se transpõe frente a um lugarejo na cidade, contornado por passeios que historiam, silentes, a prática da boa vizinhança. Casas de todas as cores do arco-íris com janelas abertas para o sol e para a lua. Tempos de hábitos singelos, de pouca complexidade, em que a lua brilhante cumplicia com as sombras a medida certa da penumbra para as serenatas na madrugada. Ainda não completei sete anos, mas à distância, distingo a casa guarnecida de verde e cheia de significados, construída das fundações ao telhado, com a poesia emanante da força e da raça das mãos do meu pai. Minha mãe traz nos lábios a veia poética em adiantado estado de maturação, gestando seus sábios provérbios a apontar melhor direção para os nossos questionamentos.

Vou entrando de mansinho, pé ante pé, pensando em voz baixa para não desmanchar a miragem, disposta a colher lembranças com os olhos do espírito, mas mantenho o coração fechado no punho, caso queira fugir-me para ficar. O sopro suave de uma brisa vinda dos tempos antigos entra junto comigo, volve as folhas da Bíblia e murmura aos quatro ventos os sagrados mantras dos Salmos declamados nos Domingos. Na sala, a tela recém-pintada com a imagem dos donos da casa, desata da moldura a generosidade e o bem-querer daqueles dois seres devotados que me guiaram à fé e me sustentaram o vigor, ao preço de velada dedicação. O som discreto da música no rádio ligado ocupa o ambiente e me anima a seguir adiante. Estou pronta para escavar reminiscências, ouvir o chamamento dos afetos impregnados nas paredes e nos objetos, a me entregarem os manuscritos da minha mãe com sua irretocável caligrafia. Daquela caligrafia em que as mãos se postam na escrita com a formalidade de um ritual, e a caneta e o papel se tocam com recatada cerimônia. Encontro alguns poemas redigidos em nanquim, versando a arte de viver, que arrepiam toda a armação da minha espinha dorsal. Contenho os movimentos com acurado cuidado para não desfazer a rima de um lugar poeticamente tombado na minha mente. Tenho cautela para não toldar o remanso da Poetisa com a minha crônica invasiva.

Caminho com vagar, na ponta dos pés, para achegar-me à mesa do jantar. Na janela da cozinha, surpreendo o sol bocejando, escorregando devagar para o regalo merecido nos braços da noite. O banquinho perto do fogão, me dá a altura necessária para beber os segredos da arte de cozinhar. E de aprender a ser gente grande no calor daquela convivência com aquele Anjo que enquanto cozinha e de todos cuida, brota sândalo das mãos em cada gesto. A cada mexida da colher de pau na panela com ingredientes simples, aromas refinados desprendem o talento da confeiteira dos versos que apura suas estrofes com o sumo do sentimento. Os unguentos caseiros, os xaropes temperados com a alquimia de quem herdou a ciência dos antigos para espantar doenças, dispensam qualquer bula. Minha curiosidade se encontra com a lata de bolachas no armário aberto, balançando uma folhinha de caderno colada com grude fresco. Chego mais perto e vejo que tem a minha letra decifrando a fórmula para “expulsar a tosse” já aprendida com a Mestra. Enquanto seguro nos dedos tantos detalhes para levar comigo na volta ao futuro, um cheiro de biscoitos amanteigados assando começa a invadir o ar e me lembra que hoje é dia de festa. Devo apressar o passo.

Bem perto, entro no quarto compartilhado com minha irmã pequena, metodicamente desarrumado, numa desordem “programada”, porque nessa fase, eu brinco de experiências para criar “invenções”. Nesse dia, gastava neurônios para fabricar o meu primeiro pantógrafo. Embaixo da cama, um baú cor de alfazema começa a colecionar minhas “criações”: um cata-vento, uma bússola personalizada, um esqueleto articulado, um periscópio improvisado, um colar de ideias. Sob o meu travesseiro, os livros de contos dos Irmãos Anderson se revezam com os almanaques em quadrinhos para a leitura clandestina sob a luz da lanterna, depois que todos dormem. Mas hoje é um Sábado e justamente nas noites dos fins de semana, minha diversão favorita vem das esperadas histórias de assombração interpretadas com impressionante realismo na fala do meu pai. Tudo isso regado a Nescau com guloseimas caseiras quentinhas. Por isso os biscoitos no forno.

Na passagem pelo corredor, o chapéu sobre o móvel, marca a presença do chefe da família na casa, dessas presenças que por si, inspiram segurança e sugerem proteção. Um pulo do batente da porta dos fundos e me acho no quintal. Um quintal com cores, sons e cheiros próprios de um tempo em que as árvores dão meia volta sobre o próprio tronco para melhor nos cobrir, ou vergam os ramos quando passamos só para alcançar nossas mãos. O mesmo tempo em que se guardam estrelas cadentes atrás de casa. Estão todos ali – meus pais, minha irmãzinha e alguns visitantes – entre gracejos armados de risos, debulhando o milho para fazer pamonhas. Guardo na íris o aconchego daquele cenário inteiro, desde os pés de frutas, a horta com todas as cores de pimentas, os canteiros de hortelã, os barulhentos passarinhos cheios de intimidade à procura de farelos para bicar. Meu cachorrinho Biriba – um brejeiro vira-lata, que fala com as orelhas – dispara atrás de um calango e derruba o pilão de apiloar café. Sobre o tosco banquinho no micro jardim, ao pé do meu coqueiro anão, está a Zoe – minha boneca predileta, com cabelo de lã – que anda inseparavelmente comigo embaixo do braço numa alça a tiracolo. Todas essas memórias me caem junto ao peito, se recolhem debaixo da minha pele e se incorporam ao meu DNA. Seguem indeléveis na contramão do meu viver, quanto mais desbotadas no tempo, mais vivazes na minha saudade.

E assim, retiro-me na paz de um sereno adeus à casa que não mais existe, mas que ficará imorredoura no meu respeito e na minha gratidão por tudo o que representou na minha trajetória. Abraço as pessoas amadas que já se foram e lhes prometo coser as feridas engastadas na alma pela falta que me fazem, porque sei que estamos destinados ao reencontro na hora devida. E aqui eu fecho o meu bauzinho, agora a devolver-me o coração ao corpo. Um coração leve, despido de dores, livre de temores.

Mesmo nas dobras do tempo, nos avisando da efemeridade do nosso ciclo, insistimos em vendar a razão com a ingênua certeza de que tudo estará disponível para sempre e deixamos de prestar atenção no que realmente vale a pena, no que efetivamente faz diferença. Um breve olhar no ontem, por vezes, nos dá uma chance de consertar algo ainda hoje ou no amanhã. Enfeitiçados pela ilusão de que vamos parar no presente, de que seremos jovens sempre, nos perdemos no tempo, e quando nos achamos novamente, já tudo mudou, porque tudo passa tão depressa, que num piscar de olhos, ao virarmos a fronte, as pessoas já se foram, os lugares já não estão lá. E nós, com tanto para termos dito, com tanto para termos feito, com tanto para termos sido com os nossos. É porque acordamos sempre do lado errado do tempo.

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CRÔNICA 44
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6 comentários:

  1. Ai mãe! Assim tu queres me matar. O meu coração, embora ainda jovem, não foi feito para suportar esse tipo de emoção. Ainda que eu tente descrever a forte emoção que senti ao ler esse conto, não conseguirei exprimi-la. Por alguns instantes entrei na casa do vovô e da vovó, estive com eles, contigo e com minha tia, ainda crianças. Já desejei muito poder voltar a um tempo quando eu sequer havia nascido para testemunhar as tuas aventuras e as estórias que tu me contas acerca da tua infância. Me entrego a devaneios assim porque já me dei conta da efemeridade da vida e como eu gostaria de ter sido seu companheirinho desde a tua infência. Ocorre que Deus tem Suas vontades e Ele achou por bem me entregar a ti como filho para que possa aprender um pouquinho sobre o que verdadeiramente importa aprender nessa vida. Me curvo a essa determinação e me conformo. Sem planejar, a arca de memórias acabou guardando informações que embora eu não as tenha vivenciado, remetem a um tempo da tua vida que é muito significativo para mim. Tua infancia me inspira e tua inocência me enternece. Um beijo e espero o próximo conto.

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  2. Amiga querida,

    Posso afirmar sem sombra de dúvida, que você também carrega o dom de nos levar, quase que fisicamente, pelos caminhos que se dedica a relembrar ou mesmo imaginar.
    Eu cheguei à conclusão que os fatos de nosso passado existem por si só mas os sentimentos que nos ficam cravados tem um contraste tanto maior quanto nos foram marcantes.
    Fantásticas as “telas” que você pintou com os pincéis da memória e as tintas bastante combinadas das palavras exatas para cada cenário.
    Adorei mais este conto. Me fez recobrar lembranças adocicadas de quando eu morava num lugarejo bucólico e repleto de amiguinhos e amiguinhas, que também freqüentavam minha singela casa e sempre ficávamos à espera de um suco ou um lanche que certamente minha mãe nos faria presente.
    Obrigado, amiga. Só espero de todo coração que, quando estivermos velhinhos, continuemos a vasculhar em nossos baús de doces lembranças, tudo o nos fez bendizer cada dia, cada momento de nossos dias de adultos e de seres amadurecidos pelas experiências.
    Que Deus continue protegendo essa mente fantástica e competente.
    Mil Beijos.

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  3. Caraca! Fiquei passada com o seu conto. Cada vez melhor. Parabéns pelo seu dom. Ei, será que você trouxe a fórmula para expulsar a tosse? Ficamos curiosos aqui.

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  4. Aline,

    Obrigada por participar com o seu comentário.

    Agradeço, também, a todos os que leem as crônicas, a todos os que postam os seus comentários, a todos os que, como você, me emprestam o seu carinho.

    A fórmula mencionada no conto "Arca de Memórias" estava mais ou menos escrita assim:

    “PARA EXPULSAR A TOSSE –
    Descascar um limão,
    espetar com um garfo,
    levar ao fogo e deixar tostar.
    Cortar em cruz, espremer o sumo,
    juntar três gotas de iodo preto e
    uma colher de mel de abelha puro.
    Mexer a mistura com fé na cura.
    Tomar tudo de um gole só,
    dizendo: Adeus tosse”.

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  5. Estou respirando fundo para tentar ter condiçoes de escrever o comentário...

    Regina, você descreveu exatamente o que se passa dentro de mim quando lembro da minha infância...
    Algumas vezes me deparei viajando no tempo, mas nunca consegui definir meus sentimentos relacionados a essa experiência, que é um pouco nova pra mim...isso tudo é recente e, por isso, estranho.
    Ficava triste e feliz ao mesmo tempo...batia uma saudade enorme com assustador confrondo do Sr.Tempo: como ele confronta as oportunidades escapadas, as palavras não ditas, os beijos e abraços não dados, os cuidados não oferecidos....de repente tudo passa! E não falo somente da infância, dos entes que já não estão entre nós, mas daqueles que estão perto de nós hoje: precisamos nos lembrar que o momento é aqui e agora e que ele não voltará mais!
    Podemos escolher o cálice dado a nós pelo Sr. Tempo: doce, suave, apaziguante, vindos das boas lembranças ou amargos, doloros e tristes, vindos da culpa de não ter aproveitado cada momento dado a nós.

    Obrigada por me fazer entender um conflito do meu interior...

    Beijos!

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  6. Esta narrativa recupera um tempo que quase foi esquecido, mas não para quem o viveu e traz dentro de si como matéria viva de um passado não esquecido. E esta memória comovida e sincera por seus pais que já não vive e as anotações sobre os momentos e lugares da infância me fez recordar de um poema de Drummond que intitula-se “desde criança pressenti o velho que havia em mim. E como Drummond, a genialidade do autor comprova-se, aconteceu com esse conto. Parabéns, que Jesus continue lhe iluminando.

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REGINAFalcão