sábado, 8 de janeiro de 2011

O CELULAR NOSSO DE TODOS OS DIAS

A chuva abriu a nova estação sem avisar. Algumas nuvens cor de chumbo, àquela hora da manhã, passavam carregadas, tão baixinho, que na saída do shopping meu pensamento bateu numa delas e colheu um anúncio de friagem caindo o resto do dia. Caminhava para o estacionamento aberto me ocultando dos pingos sob o casaco úmido, como uma ave que agasalha a cabeça sob as asas molhadas. A pressa me pedia prudência para olhar o chão onde ia pisando. De repente, no estreito espaço entre uma vaga e outra, a surpresa de um estranho movimento no piso bloqueando a passagem, me barrou estática, até que eu pudesse entender o que se passava à minha frente: na pista encharcada, um par de pernas salpicadas de lama impulsionava o tronco de um homem bem vestido agachado embaixo de uma Triton Mitsubishi. Calcando o lustroso sapato contra o solo, no melhor estilo lagartixa, aventurava-se mergulhar mais fundo e assim alcançar algo tão precioso que valia o risco de perder o terno ou comprometer a própria integridade física num bizarro acidente. Ao perceber que alguém observava, levantou a voz com certo embaraço: “Tá tudo bem! É o meu iPhone que resvalou pra baixo desse carro e eu estou resgatando o aparelho”. Ufa, era apenas uma operação de salvamento de um... celular. Retomei minha marcha repensando com os meus botões: “Um minúsculo objeto eletrônico concorre pela posição top na escala de desejos ditada pela ‘modernidade’ e, não raro, recebe mais atenção e energia do que qualquer ente querido mais próximo”.

Em tão curto tempo o celular tornou-se quase um periférico da máquina humana. Ganhou status de parceiro na convivência com o homem moderno, criando uma relação de dependência explícita: dorme e acorda junto, frequenta o mesmo banheiro, descansa incondicionalmente pertinho dos seus braços, recebe o calor das suas mãos mais vezes que qualquer animal de estimação, acompanha sua rotina atrelado a tiracolo, apossa-se de vaga privilegiada em sua memória e tem residência fixa entre o seu ouvido e a boca. E, se por um eventual descuido, seu senhor (ou escravo?) dele se separar ou se descobrir desacompanhado desse “gênero da maior de todas as necessidades”, sente-se nu, impotente, incompleto, vulnerável, literalmente fora do ar, entra em pânico e se atira a qualquer empreitada de risco para reavê-lo.

Penso que tudo isso é resultado de um dos efeitos colaterais dessa nova era em que vivemos. A simples possibilidade de se sentir incomunicável em qualquer lugar gera uma atormentada insegurança ao viciado nesse aparelhinho móvel, exótico e, muitas vezes, infernal. Infernal, principalmente, quando uma longa conversa fiada ao volante do carro abre o caos no trânsito, a expor condutores e transeuntes a danos irreversíveis. E essa festejada novidade atolada de utilidades, como toda “moeda de dois gumes”, esconde, na outra face, o risco de desenvolver doenças e distúrbios potencialmente vinculados à radiação eletromagnética emitida por suas ondas sobre mortais seres humanos. Mas todos os terráqueos antenados nas novas tendências portam consigo esse diminuto instrumento, ligados a uma infinidade de siglas da web que ultrapassam os confins da ficção, num mundo onde a multidão aumenta nas ruas, mas o sentimento de afastamento e isolamento é profuso. Onde as pessoas se conectam pela fala mais do que nunca, mas a solidão e a falta de solidariedade imperam absolutas. Onde as redes sociais se alastram por todos os pontos geográficos, mas a carência marca o passo e a ausência assina presença.

Sei que o avanço veloz da tecnologia nos flagra perplexos e arremessa, em doce melancolia, um ar de saudosismo ao passado. Um passado sem os sofisticados recursos trazidos pela Eletrônica, mas farto de reuniões com familiares, amigos, colegas, vizinhos, conhecidos... É inegável que, nos dias de hoje, o telefone móvel agrega numerosas vantagens garantidas pela propriedade de ser portátil. Como uma via de atalho, se transmuta em poderosa arma de ligação entre pessoas, sem limites de tempo, espaço, convicção política ou religiosa. E cada usuário desenvolve uma relação própria, peculiar com o seu brinquedo. Muita gente fustiga a orelha, por horas seguidas, na carenagem desse engenhosa ferramenta de comunicação. Têm, nela, a via de solução mais eficaz de seus assuntos pessoais e comandam através dela todas as suas operações diárias. São os casos que eu chamaria de assumida sujeição, ambos, felizes até a tampa. Também pessoas há, que atribuem ao celular a oscilação do seu nível de bem-estar, segundo a quantidade e origem dos telefonemas recebidos. As mensagens colecionadas balizam o seu estado de satisfação e computam o grau de agrado que o seu dia lhe traz. Outras criaturas, ainda, depositam no aparelho toda a sua concentração diária, empregando tempo e esforço na troca de torpedos ou na manipulação hipnótica dos recursos. Escravizadas pela frenética exploração das funções incorporadas ao seu modelo, fazem do telefone o seu objeto de devoção diária, o santo de suas horas ociosas. Vivem num mundo paralelo, alienadas de todo o resto, à margem de tudo.

Também me confesso aficionada por tecnologia, mas, no que se refere ao meu telefone celular, decidi, como razoável, a permanência mínima no seu campo de radiação, em ligações breves. Resisto, impassível, às suas habilidades de sedução e não permito sua ingerência indesejada no meu tempo, nos meus assuntos, no meu dia. Exerço eu o controle, dito eu as regras para permanecermos sob o mesmo teto. É assim que desfrutamos de uma convivência pacífica e harmoniosa. Usar e abusar do celular não está, ainda, regulado por regras de boa conduta, mas reclama as regras básicas embutidas no código do bom-tom e na lei do bom senso. "Tudo demais é muito", assim, carece encontrar o equilíbrio no uso e desuso dessa peça indispensável junto aos nossos apetrechos de guerra e paz, dia e noite.

Num rodízio de pizza, por exemplo, em casa ou na cervejaria, para jogar conversa fora ou tratar de temas longos, cabem aquelas extensas ideias trocadas em ligações intermináveis que calejam as sensíveis conchas da nossa audição. No velho hábito de arrumar as cadeiras nas calçadas, na frente das casas, cabem todas as trocas de notícias, como antigamente, quando tudo dependia mesmo do encanto do encontro, da dramaturgia da conversa, do gosto de aconchego da boa prosa acompanhada de risadas. Como dizia o meu pai, loquaz em sua fala sempre cheia de cor: “Compadre, para uma boa prosa, preparo uma galinha d’angola, resfrio um bom vinho no Domingo e lhe convido para almoçar”.

Por tudo isso, precisamos reaprender a abrir os olhos. Todos os dias a nossa vida passa frente a eles. Muitas vezes é no abrir dos olhos que nos descobrimos a avultar memórias. Mas se enxergarmos tardiamente, já quase nada nos pertence, porque os dias são efêmeros, é como acordar a tempo para o mundo, mas muito tarde para a vida. É preciso, de vez em quando, cancelar as ligações, desligar a campainha, emudecer o celular nosso de todos os dias, para ouvir o barulho do mar ou o assobio de uma rajada de vento. Ouvir o ruído do movimento à nossa volta, o som da vida, o clamor da consciência. Ouvir a voz do silêncio. Do silêncio que vem de dentro de nós para estabelecer o contato com as profundezas do nosso interior, onde Deus está. À espera da nossa chamada.


....................................................................
CRÔNICA 41
Mande um recado pra mim, comente este conto.

Poste um comentário!

4 comentários:

  1. Olá....to morrendo de saudades dos seus contos. Entendo que o celular, de fato, na vida de muitos e na minha toma muito espaço. Afinal, no seu início era objeto de poucos e servia mais para se carregar ostensivamente pendurado no cinto. Lembro bem que as pessoas até falavam alto para deixar bem claro que possuíam o referido aparelho aos mortais que não tinham acesso ao bem. Uma coisa nova que veio com o celular foi a conta da operadora...veja só... a brincadeira tinha um custo...daí o pedido para emprestar o celular soava quase como uma audácia! Hoje, o aparelhinho é essencial para muitos profissionais..aproxima pessoas distantes fisicamente, executivos em diferentes cidades, principalmente pela conferência, onde até mesmo uma reunião pode ser desenvolvida entre 3,4,5 ou mais pessoas e rumos empresariais são tomados. Mas é claro, o custo dessa tecnologia não se restringe à conta, pois o danado quer fritar também o cérebro do seu portador...afinal..são microondas não? Isso não serve para cozinhar? Sei que a faixa de microondas para o celular não é a mesma do forno, mas sei que é próxima e o bichinho, assim, consiste num excelênte candidato a meio eficaz ao lento suicídio. Bom, acho que casei com o meu celular, pois dorme ao meu lado porque ele serve a mim como despertador. Se saio de casa sem ele, é como se todas as pessoas conhecidas, colegas e meus amigos me abandonassem todos de uma só vez! Sei lá..será ele o meu melhor e único amigo? Teria eu esquecido o sabor de uma conversa ao vivo? Conversa ao vivo? O que é isso mesmo? Pensando bem, vou experimentar transformá-lo em alguém menos importante para mim! Um beijão para você e qualquer coisa me liga! eh eh...Parabéns..o conto é mais um oportuno convite à reflexão. Você é um anjinho lindo sabia? Até o próximo conto.

    ResponderExcluir
  2. Amiga Regina

    Primeiramente te peço perdão por não ter impostado um comentário sobre este artigo, mas estive sem condições para tal.
    Vi que você tocou/abordou um assunto sobre o qual existem inúmeras opiniões, desde as mais tradicionalistas das comunicações boca-a-boca, até os “modernos” que se sentem bem melhor com todos ao alcance de uns botões.
    Eu creio que são raras as pessoas que compram um equipamento desses movido pela avidez de carregar consigo um instrumento de jogos.
    Acredito que existe uma avidez sim, pela facilidade de comunicação (telefone, email, messengers, etc...) mas revestida com uma dourada realização: a privacidade.
    Qual outro meio de comunicação pode ser comparado com os celulares (ou ipods) que trazem o conforto da disponibilidade e privacidade ao mesmo tempo?
    Com certeza, como você mesmo apontou, não há o que supere uma conversa pessoal, olhos nos olhos, e deixando que as mãos também se expressem e as expressões do rosto realcem qualquer sílaba, Mas numa coisa creio que concordamos: é muito mais difícil uma conversa pessoal com quem não gostamos do que dialogar via celular ou telefone, não acha?
    Uma das coisas que me intriga, é o comportamento dos portadores desses equipamentos móveis é que quando ligam para outro celular e não atende ou desligado, logo aparece um sentimento de irritação e comentários tais como “pra quer celular então”! Afinal, existe uma consciência coletiva de que “ter celular é disponibilidade 24 horas por dia e se isso não acontecer, não é “bom usuário”.
    Vejo muitas vantagens num celular pela facilidade de comunicação e até pelo “papel de localizador” que exercem sobre crianças e jovens. Os pais se sentem mais protetores se tiverem os filhos ao alcance dos celulares.
    Enfim amiga, vejo os celulares e os ipods como “seres” que catalizam o popular “ame ou odeie mas sem ele, muito difícil”
    Ainda tem o grande recurso que nos faz seus dependentes: a famosa agênda telefônica. Se perder, prooonto! Cadê os amigos?
    Parabéns pela qualidade de mais uma crônica tão atual.
    Beijos.

    ResponderExcluir
  3. Olá,
    Quando comprei meu telefone celular atual, fiz uma minunciosa pesquisa. O critério de escolha, além da beleza, era a quantidade de funções que o aparelho possuia. Escolhi o modelo da Nokia preterindo o iphone, por ser esse o mais "poderoso". De posse do meu novo brinquedo, li e reli o manual de cabo a rabo diversas vezes e afirmo que aprendi apenas metade das funções disponíveis, e olhe que sei navegar na internet, ver a previsão do tempo, mapas, videochamada, GPS etc, mas ainda assim faltou aprender um outro tanto.
    Hoje, só uso o celular pra ligar e receber ligações pelo simples motivo de que as pessoas com quem costumo me comunicar não aderiram às maravilhas da era 3G.
    Enfim, graças a Deus, o tempo dispensado por mim ao celular hoje é razoável, mas antes...
    De resto, concordo com as palavras do Ulysses.

    ResponderExcluir
  4. Impactante!!!

    Sempre que leio seus contos aprendo um pouco mais de mim e reflito em minhas atitudes.
    Vivemos em um ciclo de desajuste: trabalhamos muito (porque o sistema exige), deixamos de lado as relações familiares, o vazio nos leva a depender de superficiais manifestações de estima e admiração, as quais a maioria obtemos por meio das redes sociais e telefonia móvel, como voce bem pontuou.
    Dessa forma, está na hora de voltarmos aos tempos das relações sólidas, contatos diretos, gasto de tempo jogando conversa fora com a família ou com um amigo de verdade...
    Aprendi muito com o conto!
    E quero aprender muito mais...

    ResponderExcluir

Obrigada por participar do Blog, comentando este artigo.
Aguardo o seu retorno no próximo conto.
E não se esqueça de recomendar aos amigos.

REGINAFalcão