sábado, 19 de junho de 2010

JUSTA MEDIDA


Se ouvirmos com atenção, aprenderemos que as cidades falam a língua dos homens, em todos os graus de evolução. Também nos desvendam riquezas humanas surpreendentes, dessas que estacionam emoções no quadrante direito da via do coração. Há uma linguagem entre os gestos e intenções que desafia o entendimento das palavras.

No bairro comercial movimentado aquele vendedor de tapioca se destacava em meio ao burburinho dos pregões. Tinha um linguajar peculiar, capaz de expressar com desenvoltura palavras que fazem rir ou doer. Solícito, se desmanchava em boa vontade para conceder qualquer préstimo a quem dele precisasse, construindo pontes de afetos. Andava devagar por conta, talvez, de uma artrite a lhe tolher os passos. Seguindo com o carrinho carregado de tapiocas doces e rechonchudas, para em frente a uma placa de um escritório de advocacia e aguarda, como à espera de alguém. Não demora nada e um executivo elegantemente vestido sai de um carro em frente ao local, acena para o seu motorista esperar e dirige-se com visível pressa à porta do escritório. Antes de entrar, é interceptado pelo ancião em estado de franco desconcerto: “Doutor, aquele dinheiro que o Sinhô me emprestou, ainda não posso devolver agora, porque precisei pagar dois aluguéis atrasados. Trouxe até os papéis pra lhe mostrar”. Com expressão complacente, o empresário parou e respondeu: “Fica tranquilo, homem, eu nem lembrava mais disso!” Incrédulo e com olhos indagadores, o devedor confuso arrisca uma fala trôpega: “Então o Sinhô vai esperar mais um bocadinho?” Um meio sorriso e um tapinha no ombro esclareceram a interpretação: “Como vou te cobrar por algo que ‘eu não me lembro’?” E com um piscar de um olho arrematou o cumprimento afastando-se para atender o celular. No segundo seguinte, o pacato velhinho, ainda atônito com o desfecho da conversa, teve a manga da camisa puxada por um garoto uniformizado que gaguejava explicando o atraso do pagamento de um lote de tapiocas para a festa da escola: “Seu Zé, ainda falta eu lavar mais três carros pra juntar o preço das tapioquinhas que peguei pra escola.” Já refeito da zonzeira pelo bônus recebido, o velhinho, cheio de pose, ajeitou a gola do garoto, com ar de autoridade do adulto sobre a criança: “Ô moleque, não esquenta não, teus professores vieram aqui comprar até a raspa das minhas tapiocas. Então tu não me deves nada. Tá quite, entendeu? Agora te avexa pra aula, corre daqui”.

Fico distante do mérito quanto aos contornos financeiros que envolvem a cena, mas o acontecido me sugere uma analogia à Parábola dos Credores e Devedores no Evangelho quando um fariseu - doutor da lei - pergunta ao Sublime Galileu: “Mestre, qual o mandamento maior da lei?” E ele respondeu mais ou menos assim: “Toda lei se acha contida em dois mandamentos. O maior e primeiro mandamento: Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de todo o teu espírito, com todas as tuas forças. E o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E prosseguiu na divina tarefa de ensinar aos mortais sobre os assuntos do céu: “O reino dos céus se compara a um rei, que decidiu tomar contas aos seus servidores. Apresentaram-lhe um deles que devia dez mil moedas. Sem recurso algum para pagar, viu-se o devedor sentenciado a vender tudo o que possuía para pagamento da dívida. Desesperado, lançou-se aos pés do rei pedindo clemência. Então o rei, tocado de compaixão, deixou-o ir, perdoando-lhe a dívida. Ao sair, esse mesmo servidor encontrou um companheiro que lhe devia cem moedas. Ameaçando estrangulá-lo, cobrou o pagamento de imediato. O companheiro, ajoelhando-se, pediu paciência para obter os meios de cobertura, mas o outro, impassível, mandou prendê-lo até que pagasse o que lhe devia. Os outros servidores que testemunharam a agressão, aflitos, deram ciência ao rei do que acontecera. Então o senhor mandou vir o servidor intolerante à sua presença e chamando-o de mau servo, lembrou-lhe o atendimento do pedido de anistia por todo o saldo devido, o que lhe impunha o dever de ter piedade do companheiro. Pelo mau proceder, condenou-o à detenção até que liquidasse todo o débito”. E concluiu Jesus: “É assim que meu Pai, que está nos céus, vos tratará, se não perdoardes, do fundo do coração, as faltas que vossos irmãos houverem cometido contra cada um de vós”.

E assim fica o guia seguro para a expressão mais completa da caridade, do dever do homem para com os outros, naturalmente, sob o crivo da nossa acuidade: devemos fazer a todos, aquilo que para nós desejamos; devemos dispensar o tratamento que gostaríamos de receber; devemos ver no outro os direitos que para nós reivindicamos. Por isso, aqui me pareceu se encaixar a atitude do tapioqueiro do acaso de hoje.

Vejo, no quotidiano, muita gente rezando com fervor, tomado de arrebatamento e devoção. Porém, ao desfazer a flexão dos joelhos, lança um impropério a um desafeto, semeia uma maledicência sobre vida alheia, concebe mau juízo de qualquer um à sua volta, cria um circuito de calúnias com falso testemunho, age de má-fé quando supostamente ninguém vê, coleciona em cofre explosivos à base de ranço e mágoa, distribui avalanches de críticas destrutivas e opressoras. Entre a oração e a pratica, um abismo se instaura, pois que das palavras que saem da boca, do lado de fora do coração, desatam os atos do mau proceder para com o próximo. Para que nossas preces sejam ouvidas, penso que carece uma correspondência biunívoca entre os nossos pedidos e os nossos propósitos para validar nossa conversa com Deus no Pai Nosso: “... Perdoai as nossas ofensas como perdoamos os nossos devedores”.

É simples de entender. Com que direito nos dirigimos ao Pai Celestial pedindo indulgência pelas nossas faltas contra as leis divinas, se na mesma condição negamos o perdão aos nossos ofensores? Como ousamos pedir ao Glorioso Deus a soluçáo das nossas aflições, enquanto tratamos com intransigência as questões do próximo agoniado ou indefeso? Entendo essa regra dentro de uma justa medida: para recebermos da Misericórdia Divina a graça do perdão, exercitamos aqui na Terra a benevolência mútua, cultivamos a concórdia e permutamos sanidade. Assim como para recebermos a abundancia disponibilizada pela Generosidade Divina, precisamos edificar um novo movimento em nós: a disposição de ajudar, de ensinar, de dividir o que recebemos em profusão, de agradecer para o alto as bênçãos recebidas, retribuindo, aqui embaixo na Terra, com a prática do bem. Sem fragilizar as próprias defesas.

Perdoar é um exercício difícil, pela própria natureza humana. No meu pouco saber sobre os temas sagrados, entendo que se colocarmos o ofensor sob a ótica de um irmão que precisa evoluir, sem desejar-lhe mal, nem alimentarmos maus sentimentos pela ofensa sofrida, já configura-se o perdão. Aprendi que perdoar o inimigo não significa conviver fraternalmente com ele, e sim, eximir-se de nutrir-lhe rancor e, quando cabível, abrir as portas para a reconciliação, “até setenta vezes sete vezes”, como disse Jesus ao discípulo Pedro. Tudo isso me deixa a clara mensagem de nunca nos arrependermos de fazer o bem.

Fazer o bem, sempre, apesar de tudo. Com equilíbrio e sem olhar para trás. Quando chegarmos a esse estágio, aprenderemos que os céus falam a língua dos anjos, em todas as suas magníficas nuances de luz.


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CRÔNICA 35
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4 comentários:

  1. Bom, começo dizendo que achei o tema foi muito bem escolhido e, para variar, com maestria desenvolvido. Aliás, ao se lançar um olhar para os contos anteriores, conclui-se que não poderia ser diferente. A inspiração que a reveste sem dúvida é das mais sublimes. Os anojs que a acompanham sempre nos mandam recados atrvés de você. Parabéns, tenha certeza de que tomarei esse conto como leitura diária e obrigatória.
    Acredito que saber perdoar verdadeiramente é o que marca a mudança do ser; é quando ele inicia o seguir os passos de Jesus; é quando o orgulho, mal destrutivo e inibidor da evolução moral, já começa a silenciar; é quando damos os primeiros passos olhando para a luz de Deus. Desejo que suas palavras jorrem dessa fonte divina sempre qual nascente cristalina a formar lagos, cachoeiras e rios de esperança e mudança. Parabéns, mais uma vez....ah...até breve...bem breve tá?

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  2. Amiga querida,

    Quando acabei de ler sua crônica, não pude deixar de ficar embevecida pela forma como abordou assunto tão delicado, tanto nos dias de hoje como sempre o foi desde que o homem começou a valorizar as “coisas” próprias; tanto os bens como conceitos, conhecimentos e até pessoas que “lhes pertencem”.
    Sua maneira de comentar e sublimar certas atitudes são, inequivocamente a maior e melhor lição de bem-viver e da boa convivência.
    Sim, amiga. A real humildade e compreensão possuem valores imensos, se bem que existem pessoas (eu conheço nomes, filiação e endereços) que “acham” na complacência e compreensão, verdadeiros veios de exploração. Como tudo na vida, esses dotes divinos precisam ser exercitados comedidamente e sempre com a crítica nas reais condições das necessidades, não é mesmo?
    Da mesma forma, também conheço pessoas que fazem da “compreensão” e “reconhecimento” instrumentos de massagem em seu orgulho próprio, angariando com isso, benesses de cidadão exemplar, de bom coração e até de padrão de comportamento ilibado.
    Creio que existe uma linha tênue entre o tipo de comportamento que você descreveu e o claro “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Óbvio que os dois tipos de comportamento são legítimos e sociais. Não se deve, pois misturar nem confundir as origens das necessidades e nem as soluções obtidas sob cada uma das propostas. No entanto a grande felicidade que me trouxe a sua abordagem, é que inexistem leis que regulamentem a compreensão, a caridade e a benevolência , ao passo que para regular as reais propriedades de bens e “pessoas” existem códigos e mais códigos de leis.
    Por conseguinte, amiga, com você clarifiquei mais ainda que, se existem escolas para aprender a amar alguém e suas necessidades, só se forem duas: família e o próprio coração pois pra ensinar a respeitar simplesmente as propriedades, existem várias.
    Mais uma vez, você toca num assunto com soberana maestria de conceitos e doçura em cada florida frase.
    Grande Beijo amiga e obrigada por existir.

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  3. G,primeiramente, há que se atentar para o velho ditado "as aparencias enganam" e isso ocorre segundo a segundo no quotidiano da vida. Certamente, há uma vala imensurável entre o que se vê e a realidade de determinado fato. A se julgar pelas aparências,é condenar a todos, incluindo-se, na maioria das vezes, inocentes. E como é que fica o "nao julgueis pelas aparências?" Muitas vezes, um afato ou um gesto de alguém que se ve, conduz a uma interpretação imaginária muito diferente da realidade. O certo é, que "por não se estar, no ite de cada pessoa, ou melhor, no popular, por não se está na pele dos outros, não se deveria JULGAR, ou melhor, se fazer juizo de interpretação daquilo que se vê aparentemente. De tudo, o melhor é "não julgar, para não ser julgado" isto, para se ter uma JUSTA MEDIDA. Belo conto. avante. P.

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  4. Regina,
    você escolheu um tema bastante delicado e muito importante.
    Somos seres que, em um determinado momento de nossas vidas, aprendemos a nos posicionar diante de tudo o que pode nos prejudicar. O problema é que caimos facilmente em extremos: ora nos rebaixamos, ora nos tornamos orgulhosos!
    O desafio é o equilíbrio entre estas duas extremidades...e deve ser objeto de constante reflexão!
    Obrigada por nos abençoar com estes ensinamentos tão preciosos...não sabes o quanto cada conto me ensina a viver melhor!

    Beijos.

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