quinta-feira, 22 de julho de 2010

RESPIRAMOS ENQUANTO DEUS PERMITE


Faz dois dias, passava da meia-noite. A memória dos meus olhos já me sabia adulta, mas espiava pelo vidro da janela com o mesmo temor reverencial da infância para a portentosa exposição de raios e trovoadas adornando uma das maiores tempestades da coleção de Julho. A impetuosidade da chuva abria um leque de açoites cortantes envergando os troncos das árvores, estremecendo as paredes assustadas, vibrando as profundezas do solo e tangendo o compasso da minha respiração. Era flagrante a força ruidosa do vento uivando, a soar o alarme da nossa impotência diante do imutável, quando a Natureza, em fúria, levanta a voz. Lembro que os arrepios da minha coluna emudeceram as minhas certezas, e entre uma e outra rajada de fogo riscando a escuridão, pedia, com os olhos molhados, às nuvens inquietas serenarem o fôlego e me darem novamente a chance do dia seguinte.

Inevitavelmente se fez presente uma lembrança congelada de dois ou três anos atrás, quando ainda morava num apartamento do 7º andar frente ao rio e na ocasião formulei o mesmo pedido com as mãos postas. Na época, estávamos concentrados na execução de um projeto em família numa tarde chuvosa, quando, num único instante, o lustre embalou sozinho, o prédio de 18 andares oscilou numa dança ostensiva e perigosa, ignorando toda a robusta estrutura de ferro e concreto. Os objetos ensaiaram movimentos de arremesso, e uma sensação de desequilíbrio afetando nosso eixo nos confirmou estar acontecendo um fenômeno raro e ainda não conhecido de um tremor causado por terremoto. Quando tomamos consciência do perigo, seguramos instintivamente as mãos numa corrente, zarpamos em disparada rumo à saída e descemos pelo elevador, com as idéias confusas, o coração atordoado e o sistema nervoso em pânico, rezando para chegar ao chão, ainda que tão inseguro quanto nas alturas. Na interminável viagem até embaixo, mil conjeturas abalavam a minha serenidade e me sugeriam a proximidade da “grande passagem”. Tão certa estava, minutos antes, da minha integridade, e num piscar de olhos, exposta estava à fragmentação de todo o resto. Tudo seguia por um triz. Ansiei, naquele momento, pela oportunidade do começar de novo com mais acertos, antes do corpo baixar a guarda e deixar o espírito escapar.

O estrondo de um trovão colossal devolveu aquele acontecido ao passado e trouxe minha atenção de volta para a paisagem na madrugada envolta em negrume, com as águas descendo do alto em pancadas de assombrar. Dei comigo num canto recarregando a minha fé e deixei que as corredeiras lavassem as vísceras da terra e levassem junto os meus receios.

Quando as circunstâncias atestam a nossa constituição corporal tão temporária e pouco resistente, constatamos quão vulnerável é a matéria do nosso invólucro. Quem já esteve no limiar do outro mundo e permaneceu do lado de cá, ganhou a bênção de repensar seu viver, revendo seus conceitos, recompondo suas prioridades, reorientando seus caminhos.

Grande parte da humanidade, enquanto desfruta a dádiva da vida, se concebe “blindada” e por toda a existência lustra o escudo da presunção. Vive, dia após dia, pontificando, dogmatizando, disparando arrogância de um pedestal em “andar superior”. Pouco ou nada ouve, ignora o mundo dos outros, é dona da verdade, dona da rua, dona dos negócios, dona das pessoas, dona do mundo... quando sequer tem poder sobre si mesma, quando sequer aprende a dar sentido à própria existência.

Salta aos olhos do vivente mais desatento, a disputa diária de todos à nossa volta pelo pódio da ostentação da riqueza, da beleza, do saber. Entretanto, o semelhante é comumente visto com intolerância, agressividade, intransigência, desprezo, por vezes sob a máscara do trato “politicamente correto”. Torpeza é a tônica das ações, caçando ganhos e vantagens, ferindo e lesando qualquer um, sob o disfarce de palavras pias e doces em manobras venenosas. Pela gana do poder, todos os valores são atropelados, todos os limites da legalidade e da moralidade são ultrapassados, sem hesitação. Compaixão é virtude fora do contexto, não gera lucro, não aumenta a cotação. As aparências se sobrepõem à essência. Crescimento interior, evolução espiritual, reforma íntima são temas de segundo plano adiados para um tempo “mais tarde”, quando sequer têm a garantia de vida no segundo seguinte.

Nosso tempo de validade, assim imagino, é medido numa ampulheta celestial inexorável e sem retrocesso, liberando todas as condições para o êxito da nossa breve jornada terrestre. Entretanto, muitos gastam tempo e energia acumulando tesouros, empregados na satisfação pessoal das próprias paixões. Os bens materiais - empréstimos da generosidade divina - deveriam ser instrumentos para feitos de grande valia no nosso balanço final, pois nos céus a moeda forte são as boas obras, as qualidades da alma. Tudo que recebemos poderá frutificar em prol de alguém ou de todos. Falo, por exemplo, da abundância da inteligência que pode ser aplicada, tal qual a riqueza do ouro, derramando em torno de si os tesouros da instrução e da multiplicação do conhecimento.

Simples mortais que são, pessoas dos quatro cantos do mundo vivem com uma venda na mente, em frenesi de grandeza. Esquecem que somos efêmeros viandantes neste Planeta. Esquecem que nossa compleição física é composta de material orgânico, tem vida útil determinada, cumpre um ciclo curto. Esquecem que o corpo é o revestimento da parte imortal utilizando-se dessa cobertura provisória para cumprir um objetivo aqui neste Plano. Esquecem, enfim, que só respiramos enquanto a Divindade Superior permite. E que, a qualquer momento, tudo nos pode ser retirado. Sempre tenho em mente o pronunciamento do Senhor Deus, na Parábola do Avarento, dita pelo Mestre Jesus, mais ou menos assim: um homem rico, cujas terras tinham produção extraordinária, se entretinha a pensar consigo: “Que hei de fazer, se já não há mais lugar onde guardar tudo o que vou colher? Aqui está o que farei: demolirei os meus celeiros e construirei outros maiores, onde porei toda a minha colheita e todos os meus bens. E direi à minha alma: Minha alma, tens de reserva muitos bens para longos anos; repousa, come, bebe, goza. Mas Deus ao mesmo tempo disse ao homem: “Que insensato és! Esta noite mesmo te será reclamada a alma. Para que servirá o que acumulaste?”

Assim, depois do sobressalto com o abalo sísmico em tempo real, sacudindo as minhas verdades e me avisando da transitoriedade do meu universo, abri a tampa do peito para reordenar meus projetos eleitos e jurei a mim mesma: quando chegar a hora de receber do Criador a sentença divina da expiração do meu prazo, ter-me-ei esforçado para ser e fazer o melhor possível neste mundo, pelo tempo que me resta. Assim será.


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CRÔNICA 36
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3 comentários:

  1. Amiga Regina,

    Amei esta crônica. É impressionante como consegue descrever um ambiente tão caótico e conseguir fazer dele uma aula pra vida! Suas reflexões são magistrais mesmo porque todos nós passamos por momentos de caos na alma, no espírito, em casa, no trabalho e não temos o discernimento de tomarmos como guard-rail em nossos caminhos...!
    Sabe, amiga, as pessoas ficam esperando tremores e tempestades a vida para poderem reconhecer que deveriam ter sido melhores e mais afáveis. Para a maioria, eles chegam silenciosos e praticamente calmos num leito de morte, mas aí já é tarde.
    Já se foram as energias para transformar em atitudes tudo aquilo que se pensou e não se fez.
    O mais interessante ainda é que nesse “fechar de cortinas” aparece até o arrependimento pelo que não fez a si próprio, Transitou por uma vida fria, sem nexo, sem aperfeiçoamento do espírito, com o coração batendo em um único rítimo e compasso. Afinal a melodia da vida é enfadonha e não causa palpitaçõe nem acelerações...!!!
    Obrigada mais uma vez, amiga!
    Cada crônica que leio de você é mais uma página na cartilha dos meus anos.
    Você faz falta todos os dias.
    Esse coração é ímpar mesmo!
    Beijo no coração

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  2. Mamãe querida,
    Pensamos da mesma forma. Acredito que nossos minutos por aqui possuem atribuição, qual seja, a de nos tornarmos um pouquinho melhores. Nem sempre, confesso, estou imbuído desse espírito e aqui e ali me entrego a algumas horas de mera contemplação do tempo, de um programa de televisão, enfim, nada que agregue valor à minha existência. Contudo, não emprego meu tempo em pensamentos negativos, em desejar o mal a alguém, ou em fazer mal a alguém. Sabe, na caminhada da vida rumo ao aperfeiçoamento moral, posso até parar um pouquinho na sombra e deixar minha cruz de lado por uns momentos e depois retomar, mas regredir nunca! Tomo esse conto como mais um dotado de inspiração celestial e serve como um alerta aos que empregam mal o tempo, suas palavras e suas ações. Para aqueles que assim tem se comportado sempre há uma oportunidade de começar novamente e aos poucos apagar um passado mal vivido, afinal, um gesto de amor perdoa uma multidão de pecados não é verdade? Chico Xavier disse: "Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim." Parabéns por mais uma obra impecável e até muito breve. (breve viu???? Não demore mais a deixar um conto por aqui!)

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  3. Lembro-me de um momento, há alguns anos, no qual um conflito dominava meus pensamentos. Era angustiante em perceber que "estou de passagem"... e agora? Entendi que a única maneira de nos eternizamos neste mundo é fazendo algum bem às pessoas, não importa qual o tipo!
    Inevitável também recordar o primeiro conto, escrito por você, que li. Naquele momento pude testemunhar a existência de alguém cujas atitudes já eram eternizadas por meio de libertadoras palavras lançadas a corações necessitados.
    Palavras essas que alcançarão gerações e gerações...
    Você já é eterna, querida!

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