quarta-feira, 26 de maio de 2010

CAMINHAR É PRECISO


É fim de tarde, naquela fronteira entre a brisa e o orvalho, quando nos apetece trazer o amor à superfície dos olhos. Em sintonia com o refrigério dessa hora, começo a experiência da primeira caminhada dentro dos limites do condomínio para onde minha família e eu mudamos há dias atrás. Ainda quase deserto, com poucas casas edificadas, parece rogar por um pano de relva, um plantio de mudas, um pedaço de verde que nos traga os encantos da folhagem ou floração nos canteiros. A vegetação existente nos lotes é parca, resume-se a montículos de capim, rasos demais para esconder uma fauna abundante, assim eu supunha. Entre o mar de cimento das construções e o peive das ruas, “falta o verde para alimentar a vida e a vista”, gritam os quatro cantos do muro.

No caminho, árido e sem árvores, mil verdades inventadas fecundam os meus anseios e desafiam a minha criatividade a esboçar jardins e semear plantas adultas ao longo da trilha. Porém, o céu à minha frente é entrecortado pelo voo soberbo de um gavião formoso e audaz, que pousa no poste de luz de mercúrio na esquina. Todos os dias, no fugidio reflexo do ocaso, tem ele encontro marcado com a sua jovem parceira naquele frio e inexpressivo poste de metal. Ambos se agradam com chamados e volteios, rastreiam a área em campo aberto, focam o interesse em algo no chão e um dos namorados, num acrobático voo rasante, mira certeiro o alvo definitivamente alcançado com as potentes garras. Antes de decidirem por qual rota seguir, uma valente andorinha, em defesa do ninho e sem noção de tamanho ou poder, persegue e expulsa o casal de exuberante força para além dos confins do seu território.

Acelero a marcha para ganhar ritmo e do meu lado, rastejando desengonçado, o calango recheado de farelos e sobras de alimentos, padece o peso da obesidade escorregando arfante sobre o barro. O guloso reptilzinho traz consigo uma fileira de filhotes magricelas que certamente recebem um quinhão bem menor quando da divisão da comida. Curioso para identificar se porto migalhas, tenta me sondar apressando o passo. Enquanto rio da estratégia adotada pelo manso bichinho, vejo pertinho de mim uma borboleta bicolor pousando cheia de graça na borda de uma pirâmide de tijolos. Inesperadamente, sob a minha vista, um espécime desconhecido, alojado entre os furos “sorveu” o desavisado e vistoso inseto. Com o susto pela proximidade do invisível predador, minhas pernas imprimiram razoável velocidade às batidas no peito, improvisando uma corrida desenfreada e não programada.

Mais distante alguns metros, rolinhas nada ariscas catam pedrinhas sem gosto algum, enquanto garrinchinhas saltitam sobre as vergas de ferro e exploram uma imensidão de concreto. Bem-te-vis encontram no cume das escoras de uma laje um ponto romântico para expressar o seu canto à fêmea do grupo. Besouros estampados e de formas exóticas se mostram confortáveis nas amarras dos andaimes. No espaço acima da minha cabeça, uma revoada de araras ruidosas sobrevoa o céu já decorado pelo pôr-do-sol, avisando do toque de recolher para as outras aves. Num dos galhos da única árvore nativa reinando solitária num terreno vazio, um airoso falcão camuflado espreita as possibilidades de caça nos arredores. Do mesmo tronco, morcegos em bandos se atiram do esconderijo para embrenhar-se pelas andanças noturnas. Tudo, à beira do caminho, tem relevância e razão de ser no quadro da Criação, desde a engenhosidade de um emaranhado carreiro de formigas à singeleza acanhada de florinhas brotando do mato timidamente, fora da estação. Movimento, sons, cores e cheiros enriquecem o grandioso espetáculo orquestrado pela Natureza no concerto diário do ciclo da vida no Planeta.

Recuperando o fôlego, agora na reta final, comprovei, mais uma vez, que mesmo num trajeto relativamente curto, o ato de caminhar de coração aberto, também aquece as entranhas e enternece os sentidos até do mais cético caminhante ou andarilho, diante da manifestação de vida que existe em tudo ao nosso redor.

Penso que a faculdade de andar é um dos maiores feitos do ser humano. Um favor divino nos permitiu a proeza de ficarmos de pé, podermos caminhar no sentido existencial, naquele que está relacionado à nossa capacidade mais elementar de movimento livre de ir e vir com prazer. Porém a palavra "andar" parece ter perdido o sentido de encaixe nos tempos modernos. Não cobrimos nem mesmo curtos trechos ou pequenos circuitos, menos ainda grandes distâncias. Substituímos nossos pés ágeis por pneus e nos acomodamos na imobilidade, nos afundamos no sedentarismo com a conivência da preguiça e do descaso. Cedo ou tarde reaprenderemos que caminhar é um dos passaportes para vida longa e saudável entre os domínios deste mundo.

Andar, para mim, é um dos prazeres a desfrutar por inteiro. Entregar-me ao caminhar, é um dançar a música que tem o meu compasso, a minha medida. Com os sentidos alertas e a mente na mesma frequência do próprio corpo, movemos o nosso campo energético em nosso proveito, liberando a nossa consciência para receber os frutos de um bem que está na raiz dos nossos pés. Pés que nos levantam da cama, que nos levam aos nossos objetivos, que nos lembram o muito que podemos fazer.

Que bem me traz caminhar? Sei, como qualquer outro leigo, que o caminhar descansado, de forma consciente e prazerosa, fruindo tempo e espaço, contempla corpo e mente com sensível bem-estar: estimula a eficiência no funcionamento de todos os órgãos e sistemas do nosso organismo e por conseqüência, a vitalidade e a resistência se mostram ostensivas em cada gesto. Andar a pé, me sugere uma fórmula mágica de auferir “superpoderes”. Sei, com toda a certeza, que a adrenalina sobe, as toxinas perdem espaço, o humor levanta o astral, a postura se apruma e se ergue, as ideias acordam, as forças revigoram-se, a aparência rejuvenesce, a saúde busca a plenitude, o espírito tende ao equilíbrio e a vida ganha em qualidade. Se nada disso é importante, vale a vantagem de ser um hábito que diverte enquanto queima calorias cujo resultado nos leva às pazes com o espelho.

Resta, ainda, o ensejo propício à reflexão durante as nossas passadas. Podemos imergir no nosso íntimo, colher nossas pegadas e com elas desenhar rumos novos, ditar-nos outros sonhos, como se possível fosse construir outras histórias que nos contentam e, não sabendo o caminho, podemos inventar outro futuro.

E, melhor de tudo, se ao percorrermos uma distância, a imaginação souber devolver-nos o corpo ao coração, nos são conferidas as asas da contemplação, que transcende toda visão da órbita física e material, plana além de todas as coisas que são e que não são e que transpõem os extremos de toda nossa compreensão.

Caminhar é preciso.

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CRÔNICA 34
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6 comentários:

  1. G,breve,ter-se-a no Condominio, um parque florido de belas casas, plantas exuberantes,que, certamente,trarão maiores prazeres no caminhar. Ótimo. P.

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  2. Caminhar é preciso...

    Depois de tudo o que escreveu, minha amiga, não poderia existir chave melhor para nos convencermos de que “caminhar é preciso”.
    Confesso que fico embevida como as palavras cirandam nas suas crônicas!
    Como consegue transformar aquele “cenário quase inóspito” numa pintura onde se tintam maravilhas que a natureza reserva em cada cantinho...
    Sabe o que você me ensinou mais uma vez? Que não podemos olhar o mundo somente com visão macro. Nos pequeninos detalhes, é que residem poesias, bem-aventuranças, paixões, ódios, sobrevivência... Como enxergar e admirar tudo isso se não “caminhamos” pelas calçadas, pelas trilhas, por um quintal, pelos caminhos traçados pelas palavras e olhares de outro alguém? Como assim? É só experimentar conversar pacatamente com um andarilho ou morador de rua e ver-se descortinar tanta experiência, amargura, felicidade, estória, frustrações, orgulhos (mesmo que passados mas latentes).
    Uma das coisas que mais me enebriou, foi o conceito subjetivo de que, o mais importante é admirarmos as belezas à nossa volta, quaisquer que sejam (de singelas a portentosas) e para isso, até mesmo um portador de deficiência locomotiva, poderá sublimar sua alma se tiver esse tipo de visão: admiradora e crítica.
    Continuo, a cda dia mais, admirando sua alma e sua competência.
    Beijos, minha amiga.

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  3. Pelos mesmos motivos expostos no blog, é que digo que hoje, a caminhada é minha atividade física preferida.

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  4. Minha querida "sogra-mãe,

    Aproveito para reiterar algo que já disse a você: Me impressiono com a sua capacidade de transformar, por meio da sua "maestria linguística", uma situação "corriqueira" em um momento belo e único!
    Lembrei-me derrepente das situações, algumas inclusive já tesmunhadas por você, que eu tenho a insistente preguiça de dispor meu corpo para o movimento da caminhada...essa doeu..e muito!
    Além disso, cito também a importância do contato com a natureza, pois acredito que Deus a criou para que tirássemos dela não apenas o alimento e a vestimenta, mas também princípios, ensinamentos e mensagens cujos efeitos nos conduzem à plenitude de vida!!!!

    Mais um belíssimo e precioso conto...

    Beijos:)

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  5. Prezada escritora,
    Morei uma outra época num condomínio de praia onde por meses entreguei-me às passadas do caminhar como você descreve em seu conto. Eu caminhava, e depois passei a corer sempre ao final da tarde e início da noite, algo como entre 17:00 e 19:00h. O momento de caminhar era o melhor refúgio do mundo, pois eu calçava o tênis, pegava o ipod, tomava o elevador e no calçadão da praia me entregava ao ritmo da caminhada sob o pretexto ou motivação de perder um pouco de peso. Todas aquelas reflexões descritas nesse mais novo conto, bem como as sensações vivenciadas de mergulho introspectivo são os elementos que dão sabor à caminhada, que, na verdade, como muito bem colocado, é um convite a reescrever o futuro ou ingressar no mundo contrafatual do - e se...? - e se eu tivesse feito aquilo? - e se eu tivesse tentado mais? - se eu tivesse comido menos? e se eu disser mais : eu te amo? Enfim, esses encontros do self nos dão oportunidade de pensar novamente e tomar posicionamento novo, graças às passadas reflexivas. Excelente...Até breve (muito breve espero) .. no próximo conto.

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  6. O MUNDO INTEIRO FACILITA SEU DESEMPENHO EXULTANTE, SALUTAR E ABASTADO, QUANDO VOCÊ ESTÁ SEMPRE ESTÁ ESCOLHENDO A PERENE ALEGRIA, SAÚDE E ABUNDÂNCIA.
    Você é sempre bem vindo à realidade vibratória magnética de contentamento, sanidade e abastança, que você cria em sua mente com inclusões vibráteis de bom-humor, harmonia orgânica e prosperidade, em toda cena recordada, observada e imaginada.

    Os valores do conhecimento vibrátil da magnética alegria, saúde e abundância, estão em dividi-los na divulgação jubilosa, sadia e afortunada, porque tem efeito multiplicador alegre, saudável e próspero.

    Acreditando ser capaz de atrair pleno contentamento, sanidade e abastança, você utiliza a poderosa técnica psicológica de incluir vibrações de alegria, saúde e abundância (onde estavam ausentes), em todas as suas imagens mentais antigas e atuais, assim elas ficam magneticamente alinhadas para atrair tudo que é exultante, salutar e abastado.

    É SEMPRE MUITO DIVERTIDO DIVIDIR ALEGRIA PARA MULTIPLICAR O BEM-ESTAR. armandobeneficio.blogspot.com (Acesse esse BLOG E MAXIMIZE o SEU MARAVILHOSO BEM-ESTAR, COM CORES TÉCNICAS PARA CONVOCAR A SUA PODEROSA ATENÇÃO SEMPRE MAGNÉTICA)

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REGINAFalcão