segunda-feira, 3 de maio de 2010

TEMPO E FELICIDADE NA MESMA CADÊNCIA


O tempo não para o seu passo medido, imprimindo sua marca no avançar da nossa marcha. Descobrimos, em cada dezembro a olhar para trás, que as estações cumpriram seu curso e nem percebemos. Impassível, o tempo marca um compasso invisível regendo a nossa vida com a sua passagem que, assim como nos cura, também nos assusta com o efeito implacável do seu caminhar.

Cultuando nossos eus, perseguimos a felicidade armados de um constante ritmo de urgência com o intento de alcançarmos a ficção proposta pelas lendas urbanas da juventude eterna, da perfeição estética e da projeção pessoal a qualquer custo para recebermos o rótulo de ”bem-sucedidos”. Alimentando a ilusão da felicidade associada ao prazer, tomamos paz por monotonia, queremos intensidade e excitação. Buscamos o vão regozijo a cada gozo comprado, nos apossamos de familiares e amigos, mas pouco contato fazemos com nosso corpo, quase nada interagimos com o outro, esquecemos de notar a Natureza e principalmente estamos desconectados da nossa dimensão interior, de onde recebemos a infinita fonte criativa oriunda de nossas raízes.

Mas tudo isso desencadeia uma desarmonização em nossa saúde cerebral, gerando a perigosa reação da indiferença ao bem e ao belo, à emoção e ao sentimento. Focados exclusivamente na consecução dos nossos interesses objetivos e satisfações aparentes, amordaçamos o coração e bloqueamos as manifestações de afeto, tornamo-nos ausentes de todo o restante, perdemos a noção do que é essencial para formamos nossas alegrias e significados. Exatamente como pressagiou o pensador russo Gurdieff, mais ou menos no início do século XX: “Uma raça de homens mecânicos nascerá por causa da indiferença ao essencial, e o que hoje já apavora aos mais sensíveis, em cem anos causará espanto aos mais rudes”.

Um outro tipo de desarranjo na máquina que anima a nossa vida é a querofobia – o medo da alegria e da felicidade. Ora, como a felicidade é uma conquista pessoal, quem decide mudar para melhor a própria vida somos nós mesmos. Nossos focos mentais são imãs que atraem vibrações semelhantes, assim, a descoberta do céu claro por trás do nevoeiro está em mudarmos os pensamentos e atitudes para redirecionarmos nossa vida rumo à felicidade, desde já. Aqui entendo felicidade, não como o estado de euforia transitória, mas como a arte de viver, a arte de servir, a habilidade de lidarmos com os obstáculos munidos de equilíbrio e desapego, termos maior capacidade para discernirmos o real do ilusório, o profundo do superficial, o necessário do dispensável. Afinal, como nos ensina Fernando Pessoa com fulminante sabedoria: "Um dia de sol é tão belo quanto um dia de chuva. Cada um é o que é".

E falando de felicidade, Vicente de Carvalho - o Poeta do Mar - se revela iluminado:
.......... " ...
.......... Essa felicidade que supomos,
.......... Árvore milagrosa, que sonhamos
.......... Toda arreada de dourados pomos,

.......... Existe, sim, mas nós não a alcançamos
.......... Porque está sempre apenas onde a pomos
.......... E nunca a pomos onde nós estamos."

Tal como magnificamente expresso no belo soneto, também praticamos auto-sabotagem quando restringimos o desfrute da felicidade para um horário marcado em tempo posterior, num evento futuro, numa data específica. Na vida real, tempo e felicidade podem caminhar na mesma cadência: todo dia, hora e instante é tempo e lugar de sermos felizes, de nos sentirmos bem, independentemente da celeuma ao nosso redor; trata-se de um processo interno, um “estar bem” dissociado do alvoroço e das reações do mundo exterior. E se deixarmos por aí, andar livre o nosso coração, saltará à boca dos nossos olhos que o valor do tempo e o sentimento de plenitude estão nos propósitos que construímos, nas bandeiras que defendemos e na biografia que reescrevemos, dia-a-dia, com suor e sangue, garra e fé, alegria ou dor em cada passo movido no território individual e coletivo aqui na Terra. Nascemos para a felicidade, mas para sermos felizes é preciso, antes de tudo, coragem. Coragem para auto-superarmos a dominação das nossas fraquezas e fragilidades e exalarmos alegria, ainda que com o rosto ferido de lágrimas.

Presenciei uma amostra do que aqui afirmo naquele hospital, onde a jovenzinha, ciente do tempo abreviado que lhe restava, empregava todos os minutos que a doença lhe autorizava os movimentos, para filmar ou fotografar, sob sua ótica, todas as ocorrências à sua volta. Mostrava entusiasmo a cada cena capturada. Vibrava com as descobertas dos detalhes no registro da evolução da cura dos internados. Distribuía as fotos e montava um mural criativo ao pé da cama. Tudo justificava um clic bem-humorado, pois qualquer coisa em sua lente ganhava expressão e importância, desde um canário curioso na janela até às nuvens de chuva pintando o céu de chumbo. Certa noite ajustou o foco da filmadora, mirou no céu apinhado de astros piscantes e brincou de “pescar” algumas estrelas para "levar" consigo. Naquele dia, ao visitá-la, perguntei, temendo pelo tamanho da indiscrição, se lhe doía deixar este mundo, ao que me respondeu de pronto: “Eu fui muito feliz aqui, aproveitei cada instantinho a que tinha direito, em cada coisa que fiz. Se o meu tempo foi curto, tenho certeza de ter sido inteiramente aplicado para viver com toda a gana. Só me queixo da saudade que vou levar das pessoas legais que conheci, das mangueiras do meu quintal e das maravilhas naturais que só aqui tem. Comovida, caprichei na elaboração de um calendário personalizado com a sua foto entre os meses do ano, em agradecimento pelo que me ensinou. Ao chegar ao hospital, no dia seguinte, portando a prenda, vi a cama estranhamente vazia, as paredes recolhidas em luto, o pranto abafado em cada poro da madeira dos móveis. Com o coração entorpecido, ouvi da enfermeira plantonista: ”Ela não está mais entre nós. Ontem à noite, animada, mexia nos arquivos da câmera e ainda falou em deixar umas estrelas pra você”...

E assim descobri que carecemos aprender a dirigir o nosso próprio tempo, olharmos em volta e avistarmos as bênçãos que o Pai Celestial nos legou para que a felicidade se efetive de imediato em cada um de nós. Resgatemos o sossego, as brincadeiras em família, o almoço de Domingo, o passeio de mãos dadas, o banco da praça. Agradeçamos o trabalho para onde o destino nos apontou, abençoemos as pessoas tal qual se apresentam. Resmunguemos menos e sorriamos mais, critiquemos pouco e abracemos muito. Repensemos a simplicidade de sermos luz e sombra, força e ternura, pássaro em vôo livre ou guerreiros plenos de paz, sem conferirmos os bens do vizinho ou nos compararmos às promessas ilusórias anunciadas pela televisão.

Essa é a estrada da felicidade verdadeira, cuja maior satisfação não é alcançar a meta, mas valorizar cada momento e desfrutar o caminho...

....................................................................
CRÔNICA 33
Mande um recado pra mim, comente este conto.
Poste um comentário!

5 comentários:

  1. G, há quem diga: Foi-se o tempo! ou, Já era! ou ainda, tempos bons aquele!. Digo eu: "tempo e felicidade na mesma cadência" (?)é se tentar tirar leite de pedra. O momento que estamos a viver, com tanta crise, tanto desacerto, tanta falta de princípios éticos e morais, crimes dos mais horrendos, crises conjugais, falta de amor de pais para filhos e vice-versa, programas de televisão que só estão a ensinar crimes e traições, adulterios, só você, com sua crônica, procurar elevar o espirito de seus leitores. Parabens. P

    ResponderExcluir
  2. Olá! Em primeiro lugar é muito importante dizer que estava com saudades dos seus contos, afinal, já tem algum tempo que nada é postado. Em seguida, no que se refere ao conto, o tema é bem interessante e acerta na dica ao final pois, ao que entendi, vale olhar em volta para descobrir e vivenciar a felicidade no que nos cerca como o sorriso do meu pai, os carinhos da minha mãe, a voz suave e ternura do meu irmão, a saúde que todos temos, a oportunidade de ter um emprego...enfim, tudo o que Deus nos dá gratuitamente e não pede nada em troca, sem falar que nem sempre lembramos de agradecer as graças recebidas por passarem em branco, muitas vezes, aos olhos insensíveis...É..a felicidade é assim mesmo...está à nossa volta. Contudo, o homem, mais cedo ou mais tarde é tocado pela perda de um ente querido, da saúde ou amor e aquele que vive em busca da felicidade depositada longe de si como os que dizem: - só me falta um carro melhor, uma casa maior, um amor top model, etc., passa a valorizar o bem perdido e comumente diz o clichê: - Eu era feliz e não sabia.
    Parabéns mais uma vez e obrigado por nos brindar com o lindo pensamento. Continue com essa inspiração que certamente flui do plano superior da espiritualidade.
    Ah, até o próximo conto.

    ResponderExcluir
  3. Mais uma vez agradeço a Deus por ter proporcionado a você o maravilhoso dom de nos confontrar docemente...Confesso que essa doeu!...
    O grande problema da humanidade é o "quando"...quando isso acontecer, vou fazer aquilo! Por que não hoje? Por que o agora é sempre a espera pelo amanhã, e não gozo dele mesmo?
    É libertador descobrir que temos controle e podemos direcionar nossos pensamentos para a nossa felicidade! Aqui, agora, hoje!
    A espera doentia pelo amanhã revela tamanha falta de fé no cuidado e proteção de Deus, que ensina a olhar para as confiantes e FELIZES aves dos céus...
    Obrigada, querida, por mais uma revelação!

    ResponderExcluir
  4. Amiga Regina,
    Você ousou tocar, com maestria, num ponto de discussão que secularmente é discutido pelos pensadores.
    Achei irretocável sua abordagem de felicidade relacionada ao fator tempo.
    Sempre ouvimos dizer que “felicidade não existe, somente momentos felizes”, mas costumamos misturar em nossos corações alguns sentimentos muito distintos: sacrifício com sofrimento ou alegria com felicidade. Creio que não seriam necessários exemplos para deixar claro o quanto são diferentes e podem se tornar pivôs de estados de espírito. Estes, na maioria das vezes, passageiros e indevidos.
    Faz muito tempo eu vi uma animação muito interessante em que um boneco estava sobre uma esteira e passava sob uma cortina de tinta azul e indelével. Claro que ele e tudo ao seu redor se tornou azul. No caminho da esteira ele passava sob outras cortinas de cores diferentes e sempre ele e o meio em que estava, assumiam a nova cor da tinta derramada.
    Sobre outra esteira, havia outro boneco que descobriu, inicialmente, que as tintas podiam ser diluídas em água, através de um botão que ele apertava antes de passar pela cortina. Este, então, sabedor das cores que enfrentaria obrigatoriamente, apertava o botão durante todo o tempo que lhe era possível para que as tintas ficassem muito diluídas e fossem lavadas com facilidade com água corrente. Pronto: sob a cortina de tinta azul, ele passou sem diluir pois essa seria a cor de que mais gostava, mas as outras caiam sobre ele sem que o pintasse fortemente. Ao final, o primeiro boneco estava recoberto pelas tintas sobrecamadas todas mas ao segundo, bastou um pouco de água corrente e permanecer impregnado somente com a cor azul. Assim é a vida! Dosarmos, na maneira do possível, cada tinta que vier a recair sobre nossos corações, de maneira que a escolhida seja indelevelmente a nossa e do nosso meio. A escolha é de cada um de acordo com seu preparo de espírito.
    Como você, creio que Deus não nos fez para sermos infelizes, mas nada contra que tenhamos que passar por algumas provações e sacrifícios, mas daí até a infelicidade...
    Obrigada por você existir e pescar essas pérolas para nos presentear.
    Beijos

    ResponderExcluir
  5. O acerto dos passos do tempo com a felicidade está fora do que a mídia, o comércio etc. tentam impor como senso comum. Que bom que existem pessoas sensíveis para despertar deste estado de semi-zumbi e viver a vida com o sabor que ela tem.

    ResponderExcluir

Obrigada por participar do Blog, comentando este artigo.
Aguardo o seu retorno no próximo conto.
E não se esqueça de recomendar aos amigos.

REGINAFalcão