sábado, 5 de dezembro de 2009

CONSCIÊNCIA DE TODAS AS CORES

No saguão de entrada do meu prédio três crianças compartilhavam baixinho algo muito secreto para ser tratado em viva voz. À espera da chegada iminente de dois visitantes meus, desviei minha atenção dedilhando algumas configurações no celular, mas foi inevitável ouvir e deduzir o que se passava:

Dois irmãozinhos ruivos e bem vestidos (um menino e uma menina), acuavam, vociferando ordens em tom de autoridade, um terceiro menino de traje humilde com a pele na cor do chocolate, abraçando junto ao corpo dois volumes: uma carteira feminina usada e um filhote de gato comum. O moleque bem arrumado apontava o dedo em riste, com os olhos faiscando “superioridade”: “Mas tu és só um pretinho filho da minha empregada. Eu sou o patrão, eu mando. Eu quero ver o que tem essa carteira perdida, passa pra mim, agora!”. E a garotinha exigia, manhosa: “E eu vou ficar com o gatinho pra mim”. Sem temor, o garoto moreno - ligeiramente mais alto que os outros dois - retrucou com paciência e firmeza: “Nós três somos iguais, cara, todos brasileiros e filhos de Deus. E a carteira não é tua nem minha, daí não interessa a gente saber o que tem dentro. Eu vou agora devolver a carteira para a idosa do 6º andar, porque é a segunda vez que ela esquece no capô do carro na garagem”. E curvando-se para a menina confiou a guarda do assustado bichano em seu colo. Com os olhos fixos nos dela, explicou pausando a voz como em comando hipnótico: “Este é o animalzinho de estimação da garotinha do 1º andar. Ele fugiu e se perdeu porque é muito novinho. A dona deve estar chorando sem saber o que aconteceu. Você não ia querer essa dor pra você, então, você vai levar o bichinho e entregar nas mãos dela. Depois seu pai compra um outro pra você, ok?”.

Eu me perguntei, coberta de espanto: “Como tanta sabedoria pode caber em tão pouco tempo de experiência?”. Nesse momento, meu pessoal chegou e ao me desligar da cena perdi, por conseqüência, o final do capítulo. Mas ficou a reflexão, ruminando as idéias sobre o acontecido.

Por toda a minha vida tenho observado que, normalmente, as crianças interagem sem antagonismos com membros de quaisquer outros grupos étnicos, brincam indistintamente sem se perturbarem com as evidentes diferenças físicas ou se afetarem com a diversidade da aparência entre elas. Os preconceitos advêm, inteiramente, da aprendizagem e são introjetados, primariamente, na infância através da convivência com os adultos. O preconceito racial é, assim, o sentimento, fruto de uma convicção transmitida ou de um pensar deformado, abrindo caminho para a discriminação racial que é o preconceito em ação gerando reações, interferindo em direitos e oportunidades, afetando o convívio social e o econômico. Ambos ainda estão arraigados e muito presentes na mentalidade do povo brasileiro.

Na teoria, somos todos iguais perante o Criador no Céu e também perante a Lei aqui na Terra. Mas não é bem assim na prática. Nos termos expressos na Lei-Mãe, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", punindo-se, portanto, a prática de qualquer "discriminação atentatória dos direitos e liberdades", obrigando a todos que residem no país a “promoverem o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Assim, a atitude que desfavoreça, prejudique ou menospreze a alguém em função simplesmente da cor de sua pele ou por sua cultura de origem, é crime de racismo. Este é o racismo contemporâneo, moléstia antiga que esparramou raízes malignas na sociedade. Mas nosso racismo é estudado, dissimulado, cuidadoso: não chega a ser visceral, todavia se agasalha em nossas retinas, à guisa de lentes contaminadas a espiar os outros – principalmente os “diferentes de cor” - com menos respeito, com menos valor.

O respeito e a igualdade são princípios basilares para a harmonia entre seres humanos. Entretanto, os nossos sofridos irmãos negros ainda estão submetidos, em nossos tempos, a um racismo odioso, irracional e latente, a uma hipocrisia social ditando a discriminação no trabalho, nos clubes, nos eventos sociais... Os negros precisam da lei para protegê-los de ultrajes, precisam de políticas de cotas para vencer a concorrência para o estudo superior, precisam camuflar seus traços raciais, negando suas origens para se "enquadrarem na expectativa" da comunidade. Por conseguinte, é imperativo lembrar, à luz do Direito, a máxima defendida por KANT: "Não deixeis calcar impunemente o vosso direito aos pés de outrem".

Bem a propósito, o dia da Consciência Negra passou em 20 de Novembro – uma data no calendário oficial que nos sugere um momento de conscientização sobre a importância do povo africano na formação da cultura nacional. Um dia para refletir a consciência negra no Brasil é um dia para refletir toda a nossa consciência histórica, a consciência das marcas criminosas deixadas pela escravidão em nossa sociedade. Conquanto, no íntimo, saibamos que o preconceito é injusto e obsoleto, talvez ainda reste cravado em nossos corações alguns resíduos dúbios a respeito disso. É preciso higienizar a nossa mente do ranço maléfico capaz de cultuar a segregação racial responsável pela elevação do grau de desigualdade social tão danoso à humanidade. É hora de refletir sobre nossa consciência comum que tem muito a reexaminar, redimir e refazer no sentido mais profundo de respeito a um povo que continuará, para sempre, credor de toda a humanidade.

Por tudo isso, vejo no racismo – de qualquer natureza - um mal na contramão do processo evolutivo dos seres civilizados e que gostaria de ver extirpado de toda consciência humana. Para tal, o intelecto e a sensibilidade deverão ser exortados para uma nova percepção do mundo, quando a capacidade humana reconhecerá e assimilará os mandamentos e valores morais para a formação de uma nova consciência: a consciência de todas as cores. Nessa batalha, muito será exigido de todos nós, a começar por abrirmos os olhos ao verdadeiro amor entre os homens - a esta lição do Sublime Galileu que reverbera da Palestina há 2000 anos e que ainda insistimos em não recebê-la.

SOMOS BRASILEIROS e isso é tudo. Que TODOS nós, nas diferentes formas e cores, sexo, idade ou religião, condição social ou origem, possamos ser iguais com as mesmas oportunidades e direitos. Todos constituímos uma única raça, a raça dos homens, filhos do Pai Celestial, como bem citou o iluminado garoto - o herói mirim - do acaso contado aqui. E por ele eu ratifico:

“Por mais diferenciadas que possam ser as cores da pele no ser humano, o que tem primazia é a transparente essência que dá o grau do brilho no espírito de cada um”. REGINAFalcão.

....................................................................
CRÔNICA 27
Mande um recado pra mim, comente este conto.
Poste um comentário!

5 comentários:

  1. Olá...Eu novamente por aqui..Parabéns por mais um excelente conto! A reflexão é oportuna porque muitas vezes ouvimos aqui e ali que os negros são vitimizados, relegados às camadas periféricas da sociedade, às margens das oportunidades de estudo e emprego, mas tantos protestos, muitas vezes de cunho político, acabam por enfraquecer a voz de quem luta seriamente, ou seja, banaliza o tema pela repetição vazia. Ocorre que, graças a Deus há pessoas sérias que levantam bandeiras e, se preciso for, lutam com as próprias mãos em prol das minorias sempre oprimidas. Essas pessoas vem abrindo caminhos para o desmoronamento do preconceito declarado. Esse conto deveria ser levado às escolas, igrejas, comunidades, etc. Deixá-lo preso nesse blog infelizmente não alcança os coraçoes infantis ainda em desenvolvimento e que tanto necessitam experimentar a verdadeira igualdade e não apenas ouvir que na Constituição Federal do pais, há enunciado que diz que todos somos iguais. Parabéns novamente!!! e .... cadê o próximo conto???

    ResponderExcluir
  2. Fiquei muito triste diante da realidade das duas crianças do prédio...Lamentável! Pequeninos que já reproduzem o veneno do preconceito. Não pude deixar de ter sentimentos de indignação e revolta ao pensar que aquelas crianças absorveram estas idéias a partir dos atos de suas figuras de exemplo e autoridade. Além do preconceito da cor da pele, ocorreu também o preconceito com a classe social...
    Diante desta triste realidade, eu me pergunto: o que será do mundo? A esperança surge com a louvável atitude do menino pobre e negro. Acredito que aquela singular sabedoria é produto de bons exemplos, atos de bondade, gestos de honestidade, manifestações de bom caráter e muuuito amor. Penso que quando nos tornamos bons exemplos, somos como uma luz na escuridão, a medida que ilumina mostra a todos que estão ao nosso redor que é possível seguirmos outro caminho, cuja direção nos conduz a uma vida digna e feliz!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pelo tema. Preconceito é causado pela ignorância, isto é, o não conhecimento do outro que é diferente. O preconceito leva à discriminação, à marginalização e à violência. Todos os seres humanos têm as mesmas características físicas (com pequenas variações, é claro). Mas principalmente, todos os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus. Deus ama o mundo inteiro. Jesus entregou Sua vida por todos no mundo inteiro. O “mundo inteiro”, obviamente, inclui todas as etnias da humanidade.
    Não é de hoje que você se dedica a fazer com que nós leitores desatentos se esforcem para ver o encanto sublime dos fatos que acontece ao nosso redor e outras coisas das quais deveríamos extrair poesia. Deus lhe abençoe por escrever tão bem

    ResponderExcluir
  4. Querida Regina,

    Desculpe por nao ter comentado antes, porque estou viajando muito e só agora encontrei um tempo para comentar seu belo artigo.
    Essas tres criancas trouxeram à sua imaginacao e crítica literaria um tema extremamente controverso e, como voce mesmo abordou, de dificil solução, já que está enraizado no subconsciente das pessoas desde crianças.
    Muito interessante saber que o proconceito racial não é "privilegio" dos brasileiros, mas de todos os povos de paizes que convivem com diversidade de etnias. Vemos Africa do Sul, Estados Unidos e até mesmo a Europa.
    O que fica bem delineado, é que a esmagadora maioria das crianças convivem harmoniosamente com diversidades raciais brincando juntas, e com o passar do tempo, começa a se verificar um antagonismo que demonstra uma educação recebida depois da fase inocente.
    Claro que existem essas visões racistas até entre crian;as, como aconteceu no caso que voce observou.
    Verdade seja dita que os seres humanos geralmente nao gostam do que é diferente e se o diferente puder ser transformado em caricato, ridículo, ignorante ou de comportamento não aceito, as coisas se contrastam ainda mais - (raças -> negros crenças ->religioes comportamentos -> introspecçao e concentracao dos asiaticos ignorância -> humildes chamados caipiras não aceitacao da "concorrência" -> mulheres e jovens administradores, etc...)
    Sabe, amiga, os princípios que voce defende com tanta propriedade deveriam estar devidamente padronizados nas escolas, como continuidade da "formação inocente" das crianças e nos meios de comunicação, para enraizar cada vez mais os sentimentos de irmandade e igualdade. Quanto às raças, o "apagamento" desse estigma e quanto aos demais preconceitos, o reconhecimento de diferenças, mas que sejam vistas sempre como necessárias para o crescimento pessoal de todos os seres humanos.
    Obrigada, Regina!
    Mais uma vez você me deleitou com um tema tão em voga e tão pouco solucionado (a não ser por leis que obrigam por força a não admitir o que se pensa), Porque não leis que obriguem sim aos professores, pais, artistas a formarem nossas crianças, pois dessa forma não cometeriam "crimes" da espécie e, certamente conviveriam muito mais pacificamente com os diferentes que, desta forma só teriam a formar ainda melhor os caracteres de ambas as partes.
    Mil Beijos, Amiga
    Parabéns pela luz que Deus te deu em abordar tão perfeitamente esses temas.
    Beijos

    ResponderExcluir
  5. G, infelizmente, somos obrigados a conviver com a discriminação social em nosso país, existente em todas as classes sócio-profissionais. Não se pode deixar de considerar, que tudo, no caso, parte da falta de educação. Trato, tal fato, como "abestalhaçào cretina", posto considerar, que tanto o rico quanto o pobre, tanto o PhD quanto o semi- alfabetizado, branco ou preto, indio ou "branco" são matéria "barro" que ao partirem, fedem do mesmo modo. Belo conto. Parabéns. P

    ResponderExcluir

Obrigada por participar do Blog, comentando este artigo.
Aguardo o seu retorno no próximo conto.
E não se esqueça de recomendar aos amigos.

REGINAFalcão