sábado, 17 de outubro de 2009

ALQUIMIA QUE ALIMENTA O CORAÇÃO


O aroma daquele chocolate na minha varanda serpenteava entre os meus sentidos, me trazendo um cheiro de amanhecer da minha infância. Em algum lugar do meu prédio, naquele momento, alguém reproduziu fielmente a receita criada pela minha mãe em tempos idos, quando as estações do corpo passavam sem pressa de chegar aos dias de outono. Larguei o livro e saltei da cadeira para capturar naquela trilha a imagem daquela fórmula chegando tal qual um pássaro migrando do passado a debicar migalhas de lembranças soterradas a sete chaves em meu peito. Lembranças com sabor de alegrias ingênuas, descobertas por aquele rastro a exalar uma mistura distinta e peculiar de ingredientes. Na linha que aparta a realidade da fantasia, fui tragada para um espaço atrás do tempo, num Domingo de festa na minha antiga casa:

Sobre um banquinho de madeira ao lado do fogão, estava eu, de pé com os meus cinco anos de irrequietação, descalçando a visão para beber com os olhos, a mágica da minha mãe em transformar uma simples combinação de elementos disponíveis na cozinha em uma iguaria de incomparável paladar para deleitar também o espírito: é a alquimia que alimenta o coração. As festas em família eram celebradas já ao amanhecer com o especial chocolate à moda da minha mãe. Aquele gosto marcava momentos de diversão e encantos tão preciosos que eu me permitia o direito de conservá-los em banho-maria por todas as primaveras. Guardo, talhado a ouro na minha mente, cada quadro do ritual de um preparo muito simples, sem mistérios, porém, cheio de detalhes: Inicia-se o processo cantarolando baixinho uma música agradável aos ouvidos. Leva-se o leite na quantidade desejada ao fogo e, antes do ponto de fervura, acrescenta-se o chocolate na proporção adequada. Mexe-se devagar com uma dose generosa de paciência e carinho. Inclina-se, suavemente, a face para a frente e aspirando a embriagante fragrância, recita-se com capricho um “hummmmm” de olhos semicerrados. Colocando-se o melhor sorriso no rosto, tempera-se com açúcar, uma pitada de amido de milho, cravo da Índia e canela em pau. Pronto, assim era servido quente, cremoso e cheio de amor. Justamente por isso viria a cobiçar o meu coração para sempre e ainda por isso permanece vibrante perante o caminhar desfocado do tempo contra a nitidez da minha saudade.

Os pratos que nos remetem à meninice, associados a aromas e sabores daquela fase pueril, nos trazem, mesmo que inconscientemente e por alguns momentos, uma sensação de confiança, de aconchego, de solidez emocional. Aqui me faz bem lembrar o desenho animado onde o apaixonante ratinho Rémy - o chef de cozinha afeiçoado à arte de cozinhar - ao criar o famoso refogado de legumes francês venceu as resistências do severo crítico de restaurantes, simplesmente porque aquela criação culinária - o ratatouille - encontrou ressonância na comida caseira saboreada em tenra idade.

O alimento familiar, temperado com sentimentos que reatam afetos, tem o imediato e automático reconhecimento pelo cérebro em qualquer época. Existe uma narrativa sobre a comida do coração mais ou menos nestes termos:

Um rei na meia-idade, que conquistara todas as riquezas e glórias, sofria de uma incerta melancolia pelas vivências nos tempos de infância. Aos cinco anos de idade na companhia do pai, esconderam-se numa densa floresta em plena guerra, depois de perderem-se da trilha do castelo. Na ocasião uma anciã os encontrou famintos e cansados, deu-lhes abrigo em sua cabana e preparou uma torta de amoras para alimentá-los. Longe foi o tempo e ousou segredar-lhe um passado sem volta, distante do alcance do poder real, mas o rei não mais esqueceu o sabor da torta e as sensações a ele vinculadas. Saudoso, ansiava experimentar novamente todo o contexto agregado àquela receita. Convocou o seu melhor cozinheiro para que lhe preparasse aquela torta com amoras exatamente como a do passado, que lhe despertasse a perdida sensação de encantamento. O aflito cozinheiro, temendo pela própria sina, investigou minuciosamente os detalhes da receita da torta: onde colher as amoras silvestres mais doces, os versos de encantamento para recitar durante o preparo, as medidas exatas dos temperos e os ritos para que ficasse deliciosa e perfumada. Ao saborear o elaborado manjar, o rei, extasiado, chamou o cozinheiro à sua presença e lhe presenteou com fortuna e título de nobreza, porque a química resultante da degustação daquele quitute com o gosto de “antigamente” proporcionou à Sua Majestade, por alguns segundos, o sabor da infância, a companhia do pai, a aventura na floresta, e até mesmo a expectativa da guerra, que a mesma torta lhe gravara nas idéias há cinqüenta anos. O rei encontrou, nessa ocasião, muito além do frescor da mocidade: a sabedoria da simplicidade e a experiência sobre o futuro que veio depois.

Mas o que alimenta a alma nem sempre faz bem ao corpo e nem sempre a saúde agradece. A comida da infância é arquivada num casulo da memória como marco de força e segurança. Porém, para ser saudável, essa nutrição dos pequenos de agora, que remeterá a prazerosas lembranças no futuro, deve ser dirigida para alimentos funcionais e naturais, mimando o corpo físico, em qualquer tempo, com bem-estar e qualidade de vida.

Alimentação é um assunto recorrente entre os humanos na vida moderna, mas infelizmente transformou-se em mecânico ato de consumo de alimentos industrializados. A rotina imprensada e a força descomunal da mídia desbotaram o hábito salutar de consumir alimentos naturais assim como o de partilhar com alguém as delícias de testar novas habilidades culinárias ou trazer ao tempo presente as tradições gastronômicas de família.

Envolver alguém da família na divertida tarefa de preparar uma merenda elaborada para ser repartida, ou combinar a montagem de um jantar acompanhado pelos entes queridos são situações que vão construir o banco de dados dos sabores associados a afetos na memória da criança. E é, justamente, nessas ocasiões que os pais abrem as portas do íntimo para expressar sua afetividade e personalizar a comida que satisfaz, também, as necessidades do coração.

Essa comida prazerosa muda de forma e aspecto segundo a época, o lugar e as condições em que se viveu, ou seja, depende das experiências passadas e da percepção olfativa e gustativa de cada um. Assim, para mim, por exemplo, uma caneca de café, adoçada com melado de cana e salpicada com raspas de rapadura é um alimento que me traz o confortável reviver da juventude e orvalha o meu coração. Agora eu pergunto: "E para você, o que seria?"


....................................................................
CRÔNICA 25
Mande um recado pra mim, comente este conto.
Poste um comentário!

6 comentários:

  1. Hummmm.....sinto cheiro de um conto quente saindo do forno da padaria! A cobertura é doce; o conteúdo tem a massa no ponto e o sabor é especial e característico dos contos já presenteados aos leitores desse blog.
    Há certos alimentos que, para mim, representam também uma passagem da vida, tal a importância que eles adquiriram naquelas épocas....tipo manjar branco....que quando provei, defato, era a coisa mais gostosa que havia entrado na minha boca (era o manjar da minha mãe); tem também a massa de bolo depois de batida, mas antes de ir ao forno...o sabor é de massa crua mesmo...gostosa, mas crua. Entretanto, para mim, é um retrato dos tempos em que eu ficava sob a mesa da cozinha desenhando no chão, vendo os pés da minha mãe enquanto ela fazia a porção mágica que iria virar um bolo, depois que saísse do forno do fogão. É....só nossas mães fazem mágica..Até o barulhinho da colher batendo no copo de leite que ela fazia antes de eu dormir me dava sono mais gostoso...Delícia de conto..Parabéns...Vou saboreá-lo mais um pouquinho...Até breve.

    ResponderExcluir
  2. Que conto maravilhoso!

    Você consegue trazer a minha consciência tudo que existe de mais puro e singelo nas minhas memórias!
    De fato é impressionante como um simples aroma resgata sensações e sentimentos vividos há muito tempo...
    O mais interessante deste conto é a oportunidade de refletir no peso emocional de elementos simples para tomar novas atitudes principalmente com as crianças, que estão construindo estas impressões.
    Quando me deleitava com esta nobre leitura, inevitavelmente imaginei como será bom poder ter momentos maravilhosos com os meus filhinhos...Cozinhar, experimentar sabores, enfeitiça-los com o cheiro das panquecas de mel...Que delícia! Eles não vão querer saber dessas porcarias que estão por aí...E além da mamãe ainda tem o papai e a vovó com maravilhosos quitutes!
    É um sonho!

    Parabéns por mais um lindo conto!

    ResponderExcluir
  3. Amiga Regina,
    Que delicioso desafio conseguiu com a última frase de sua crônica: “... e pra você, o que é?”
    Fantástico o que consegue despertar em nosso espírito, permanecendo no mote que poeticamente descreveu. Voce teve a competência poética de abordar num só devaneio, os fantásticos sentimentos despertados pelo simples chocolate preparado com doses de carinho pela sua terna mãe.
    Sim, amiga, como todos eu também os tenho sulcados no fundo do coração. Não adianta, eu não consigo nunca a textura e o sabor daqueles pimentões verdes fritos que minha mãe fazia para saborearmos no café da manha, escondidos em um pão talhado ao meio. Também desafiavam meu olfato e surgiam com todo o seu fulgor em cada mordida! Tínhamos esse privilégio mesmo porque éramos uma família pobre e tínhamos pés de pimentões plantados no quintal. Nosso acompanhamento para o café da manha estava sempre garantido. Mas hoje, não é mais o mesmo!
    Sabe, amiga, eu sei também que o coração convive com longínquas lembranças, mas tenho certeza que as lembranças recentes também o marcam para os dias futuros. Como esquecer o prazer de um tacacá na praça, de um pato no tucupi na casa de um amigo, de uma cerveja ou um uísque acompanhados pelo brilhante sorriso de quem se gosta na companhia... Sabores... sabores inesquecíveis existem até naqueles do batom quando um beijo, também inesquecível, faz com que saboreemos cada segundo...
    Como sempre, nossa lingua ajoelhada frente à sua chama poética... ”Justamente por isso viria a cobiçar o meu coração para sempre e ainda por isso permanece vibrante perante o caminhar desfocado do tempo contra a nitidez da minha saudade.”
    Regina, tudo o que escreveu, e que nos fez divagar não pode ser aditado em nada, nem mesmo se ponderarmos sentimentos opostos despertados pelo “provocante aroma”. Certamente alguns alimentos e bebidas também carregam nossas lembranças com momentos em que não foram celebradas com paixão pelo momento: um jantar de despedida, uma última taça de vinho evocada para uma noite agradável e que termina no amargo fermentado que durará uma vida na boca e no coração... Um prato feito com jiló que fomos obrigados a “saborear” para não fazer desfeita ao dono da casa... Hoje sei que passei a gostar de jiló, mas sempre me remete ao primeiro desconforto em ter que comê-lo.
    Fantástico, minha amiga, o mote com que nos fez pensar e pensar e achar até justificativas porque um aroma ou um sabor podem ser tão importantes nas nossas vidas.
    Obrigada por mais este presente ao coração
    Beijos

    ResponderExcluir
  4. Da manga rosa a sapoti, melão maduro, doce mel de uruçu.
    Doces lembranças que nos transporta a tenra idade. E trazer ao presente, momentos de saudades intensas vividos no aconchego insubstituives nos braços de nossa mãe.
    Quem nào lembra dum suculento caldo de feijão preparado de modo especial por sua mãe?
    Quem não lembra do apiloar do buriti,do açaí, da abacaba e do patauá?
    Quem não lembra do chocolate quente preparado da semente moida do cacau adicionado de uma boa gemada?
    E dos licores?
    Certo é G, que a leitura desse conto, faz com que seus leitores revivam momentos prazerosos de suas infância e percebam o quão eram felizes e não sabiam. Mais um sucesso. P

    ResponderExcluir
  5. A cada conto você aflora ainda mais nossa emoção.Viajando no arquivo feliz da infância, busca no fundo da memória os registros de sabores, aromas e prazerosas lembranças das guloseimas que marcaram a nossa infância.É de dá água na boca. E esse seu jeitinho de nos fazer recordar enche a nossa alma de nostalgia. Que Deus continue lhe abençõando com esse talento.

    ResponderExcluir
  6. Nossa já fazia algum tempo que não entrava no seu blog, mas valeu. Qual não foi minha surpresa! saborear e sentir sabores e aromas que foram próprios da minha infância em Campinas no início dos anos 80. Só para encerrar, o saboroso pão alemão quentinho, decorado como casco de jacaré e entregues sob encomenda por Seu Adão Padeiro. Parabéns Regina por essa joia preciosa

    ResponderExcluir

Obrigada por participar do Blog, comentando este artigo.
Aguardo o seu retorno no próximo conto.
E não se esqueça de recomendar aos amigos.

REGINAFalcão