domingo, 4 de outubro de 2015

UMA NOVA LEITURA

Alguém me perguntou no avião:

- O que mais te agrada nas viagens?

Respondi que é o cheiro da vida. Os movimentos dos dias que encontram ressonância nas quatro estações que habitam em mim. Quinhentas vezes me espanto com os cinquenta mil tons de cores, texturas e olores pintando a grandeza das paisagens na Terra. Que deixam meu coração sem fala, sempre que invento andanças por esse mundo de meu Deus.

Mas o que me acende nas viagens é poder olhar e ver o que se passa ao meu redor, dentro de uma nova leitura, livre de censuras, livre de geografias. Avisto o atrativo de cada mundo por onde passo ao deixar meu coração dar sentido àquilo que as minhas poucas palavras interpretam. Do mesmo jeito que faço no meu dia, no meu canto, na minha tribo, quando aprumo o aroma do Belo na beira dos olhos.

Penso eu, é como olhar com a íris da alma, quando estamos dispostos a romper com o óbvio e enchemos o peito com ar fresco da cor da hera que sobe nos cumes. É assim que a mente descobre uma nova trilha para melhor perceber o que lhe foge a olho nu.

Desde os domínios da infância, trago rabiscado no DNA a ideia de sobrevoar sonhos no futuro. Sonhos grandes, maiores que o horizonte da minha janela que eu alcançava com as mãos. De navegar até terras distantes, de buscar o inusitado e viver redescobertas. Mas enquanto o amanhã não vinha, aprendi a ruminar a riqueza de detalhes que estava mais perto, ao longo do dia, no meio do caminho. Esse hábito criou raízes além dos meus limites para mostrar que não preciso colocar a felicidade num pódio, no destino, na linha de chegada, enquanto ela se derrama na passagem, no agora, no inesperado.

Foi assim que passei a enxergar toda a poesia escondida nas prosas e a escrever com as tintas das palavras pintadas na ponta da língua. Passei a construir páginas com os retalhos das cenas que me tiraram o fôlego na caminhada. Poderia contar tudo em historietas de uma frase só, com meias-palavras. Mas por trazer os neurônios vertendo alfabetos pelas bordas, tenho urgência em gastar as palavras inteiras. E sempre que folheio meu tomo de memórias, ao escrever meus contos de acasos, minha alma anda longe do corpo e nem se dá conta de que me deixou para trás.

E aqui resgato um recorte de um dos sonhos sobrevoados num país que se estendia em vermelho, em protocolos, em trato elegante, em gestos polidos.

Lá estávamos nós dois - Ulysses e eu - no saguão do hotel, decidindo um percurso novo para aquele dia em Londres. Todo o frio londrino cabia dentro do meu casaco e congelava os meus planos. Nem luvas davam conta de barrar a invasão dos dez graus direto nos meus ossos. Eu sentia cair flocos de neve diluindo cada item do nosso roteiro. Pedia umas horas de trégua àquela chuva fina e insistente, para sair e andar livremente nas ruas da cidade. Já contava nos dedos os dias passados desbravando a Inglaterra, numa via-sacra de monumento a monumento. Mas naquele dia, tudo o que eu queria era encontrar o DVD original do filme Somewere in Times, e quem sabe, escavar uma relíquia dos Beatles gravada em vinil.

No começo da tarde, me surpreendi com a pausa no tempo nublado. As nuvens cor de gris passaram a dissolver apenas um sereno suave só para cobrir a nossa escapada do hotel. Capuz na cabeça, passos ligeiros rumo ao metrô. Uma vez no interior daquele coletivo subterrâneo, deixamos de considerar os trajetos de todas as linhas. Deixamos a direção à deriva, para explorar zonas desconhecidas, fora do traçado turístico. E finalmente, decidimos descer num trecho qualquer.

Quando saltamos na plataforma, sentimos ter caído em área restrita, bem diferente da zona de conforto hoteleira. Havia uma nítida linha divisória de costumes e posturas, dentro de um conglomerado comercial avançado. Todos os passantes se trajavam de negro, usavam maquiagem pesada, cabelos coloridos, desenhados em cortes exóticos e exibiam corpos andrógenos com uma aparência unissex, cobertos de piercings e tatuagens agressivas. Lembrava um estúdio de filmagens de uma comunidade dark. Mas as expressões intimidadoras e gestos ostensivamente rebeldes mostravam que se tratava de um clima pouco amigável na vida real.

Apressamos o passo e conseguimos entrar rapidamente numa lojinha discoteca. Sobressaltada, espiei pela vidraça, com o medo escorrendo nas minhas pálpebras, tentando lembrar o que tinha ido comprar para abraçar tanta loucura. Respirava tão forte, que minha mão reconhecia o caminho que o ar percorre dentro do peito, tal qual o correr de um rio invisível. Nunca estive tão perto de todas as minhas distâncias. Ulysses mantinha-se tranquilo, no alto de sua habitual segurança. Mas eu, só desejava um milagre de sairmos dali, impunes. Nisso, salta à minha vista, uma gôndola no canto da loja, com filmes e discos antigos lacrados. Abracei todos os meus vídeos fadados à extinção, empilhados nas sacolas com o preço que o susto me cobrou. Teríamos que abandonar o esconderijo para atravessar o campo minado. No suspense do retorno, ocultei o olhar desconfiado no bolso, e usei a adrenalina fervendo para moldar uma feição feroz sobre o meu rosto. Para afastar o cheiro do medo captado pelo predador. Mas o espelho em frente à porta me disse que o meu disfarce denunciava um coelho assustado. Saí assim mesmo, afinal, eu esperava um prodígio enviado pelos céus para salvar nossa pele.

Na saída da loja, o sol tênue já se mostrava indisposto para continuar alumiando. Estávamos longe demais da nossa hospedagem. Um frio de petrificar os passos prendia minhas palavras no céu da boca. E eis que do nada, um guarda tipicamente inglês, muito alto e bem vestido, aproximou-se com andar acelerado e nos abordou com extrema educação. Entendi ser aquilo a materialização do socorro tão ansiado. Gentilmente, o atento sentinela alertou-nos que aquele lugar era perigoso para nossa integridade. Não era seguro nossa permanência nos arredores e prudente seria nossa retirada. Apontou o caminho de volta, e escoltou-nos até o embarque na estação. Enquanto aguardávamos a chegada do trem, não consegui desviar os olhos do que se passou depois, a poucos metros da minha perplexidade.

Um cão abandonado, quase adulto, faminto e visivelmente atormentado por um machucado na pata dianteira, se viu atraído pela presença daquele policial. Aproximou-se mancando, parou e sentou-se frente ao guarda, no meio da passagem. Olhou fixamente para o humano, como se suplicasse algo. O guarda interrompeu o passo e gastou alguns segundos avaliando o quadro à sua frente. De dentro da expressão austera, deixou escapar um leve sinal de camaradagem no canto da boca. Sem vacilar, puxou do bolso do sobretudo um sanduíche embalado. Rasgou o pacote ao meio e curvou-se levando o pedaço até o focinho do animal. Uma lambida à distância sorveu o lanche com o papel junto. No instante seguinte, o guarda tirou um alvo lenço do bolso, fez as dobras certas para improvisar uma faixa, abaixou-se, envolveu a pata do bichinho em várias voltas, reposicionando a pele esfolada e cobrindo o pequeno ferimento.

Sacudindo os braços, levantou-se, lavou as mãos num chafariz, ajeitou o chapéu e marchou de volta, empertigado, plácido, impassível, para sua área de vigília. Completamente anônimo, sem aplausos, sem plateia, sem registros. Pensei alto ao dizer pra mim mesma que pessoas assim são capazes de perfumar gotas de orvalho.

Tudo o que presenciei ali mudou a escala do meu olhar. Talvez seja um retrato de pouca moldura, diminuto, ou sem tamanho algum para muitos. Mas para mim, estaria para sempre, lavrado nas memórias sensíveis e engrandecido dentro do meu novo olhar, da minha nova leitura. Pela janela do trem em movimento, o cenário da aventura naquela selva urbana distanciou-se até se perder em algum lugar do passado. Precisei rebobinar-me para escrever este conto.  

Reconheço minha vida sem rascunho e ainda em construção. A cada amanhecer, reservo ao coração assentos calmos. Mas a todo instante, um pé-de-vento sacode as minhas certezas e me diz que há beleza no mundo, para eu sobreviver de esperanças na humanidade. Ainda que em migalhas.

E assim, os anos passam tão rente aos nossos pés, que às vezes eu me deixo chover. Para florir violetas no meu chapéu, enquanto desato a corda do barco que parte de mim, levando-me a outros mares para eu cumprir minha sina de eterna aprendiz da vida. E o meu peito, farto de maresias, alberga um coração incrustado de conchas contendo vozes e sorrisos. Lapidado pelos ventos fortes dos lugares por onde passei.


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CRÔNICA 57

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8 comentários:

  1. Que alegria pelo retorno triunfal!!! Conto maravilhoso!
    Aguardo ansiosamente por outras experiencias de muitas viagens!
    Super beijo

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  2. Quanta felicidade!!!! Sinto imensa alegria e calor no coração pela oportunidade que você me oferece de ler um conto novo, após um hiato longo. Sua nova leitura me trouxe nova e valiosa lição. Aliás, essa é a principal característica de todos os seus contos - a lição erguida com riqueza de expressão e poesia refinada. Sua lembrança me faz lembrar a honra que tive em lhe acompanhar em tão marcante viagem, na primavera europeia - de palácios ao coliseu - de gôndolas ao Vesúvio. Na verdade, Deus me deu a sorte de ser seu filho, seu fã, seu adorador, nessa grande viagem chamada vida. Obrigado pelo seu conto; pelo presente em forma de poesia; pelo seu sublime retorno!!! Milhão de beijos.

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  3. Adorei o texto e os detalhes da descrição me fizeram viajar tentando imaginar os monumentos as pessoas, ruas e todos os sentimentos envolvidos...continue escrevendo e nos presenteando com tudo isso você é maravilhosa!!! beijos

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  4. Excelente leitura, se por um lado há o povo das linhas retas e afiadas de cidade moderna, em Londres também há um povo gentil e atencioso com valores de tempos distantes. Sempre uma boa surpresa. :)

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  5. Leio todos os seus contos. Viajo com você em cada palavra. Espero ansiosamente pela nova escrita. Não nos deixe muito tempo sem as suas criações geniais.

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  6. Parabens!!!

    Não fique de ferias por longo tempo.
    Novos contos renovam a boa leitura.
    Sucesso

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