sábado, 4 de setembro de 2010

AGRADECER É ARTE

Tenho, neste instante, um pequeno seixo de rio na mão. Uma simples pedra que, entretanto, erige um totem do meu agradecimento aos céus. Cedo aprendi a agradecer, daquela forma casual, à superfície dos gestos, ao sabor das palavras formais nos ritos religiosos. Mas em diversos momentos da minha vida, fui impelida a encontrar a estrada da gratidão, aquela que nos dirige ao verdadeiro sentido de agradecer por tudo ou por algo recebido, ínfimo que seja. Um desses momentos, por exemplo, deixou registro em meu diário, ao trocar de endereço com minha família pela primeira vez.

Estávamos de mudança para um apartamento na praia, frente ao rio, na busca da ventura de encontrar em residência condominial a segurança e a praticidade exigidas pelos tempos modernos. O coração tinha ido na frente, seduzido pela vista de sol e mar de água doce. Na euforia dos preparativos, fizemos, reunidos, a última refeição na casa onde vivemos por anos. Todos os familiares cuidavam do fechamento de tudo para a entrega da chave ao recente comprador. Cheia de entusiasmo pelo rio a me atravessar as retinas e movida pela afobação, saí às pressas, sem olhar para trás, para tratar de detalhes na nova morada. No caminho, recebi um telefonema do meu marido nos seguintes termos: “Regina, quando saíste, todas as plantas dos vasos e jardins murcharam, encolhendo as folhas a olhos vistos. Abateram-se todas com a mesma reação e ao mesmo tempo, parecem sem vida”. Num estalo, lembrei que receberam rega pela manhã, mas não lhes falei da nossa saída. Com a pressão da partida em regime de urgência, não lhes dirigi qualquer atenção. E sensíveis como são, esses delicados seres vivos interagem com o ambiente, captam e transmitem energia e reagem aos estímulos externos. “Certamente perceberam nosso afastamento e experimentaram a terrível sensação de abandono”, pensei alto.

Nessa hora já me encontrava longe demais para retornar, mas com a omissão à garganta e quase febre nas mãos, caí refém do remorso por ter passado em branco o meu agradecimento ao Senhor Deus pela convivência com todo aquele verde tão acolhedor. Havia saído, à tardinha, com a cabeça no espaço e o azul das nuvens me ofuscara os laços com memórias tão gratas. Um poente inquiridor andando-me às costas, assistia a erupção vulcânica da mea-culpa, desfalecendo minhas forças.

Ensaiei uma retrospectiva dos fatos e me lembrei dos muitos anos com minha família naquela casa, ajuntando no peito histórias felizes, com muitas vitórias para celebrar. Acolhia correntes de ventos soprando nuvens animadas sobre nossos dias. Alimentava os arbustos e as flores com agrados diários quase sempre com o coração em repouso sobre suas folhas. Ao sair pela última vez, com a dispersão atracada às minhas ideias pelo  foco em outras preocupações, deixei, involuntariamente, de me despedir das viçosas plantas; esqueci, distraidamente, as palavras da prece do lado de dentro da boca com tanto para dizer. Então, mesmo distante, como quem inventa um tempo aberto num outro espaço, mentalizei o meu antigo quintal, ancorei os pés na terra entre as roseiras e agradeci ao Pai Celestial, com a força da contrição, pelo oceano que aquela habitação nos deu e que, por mais que me empenhasse, só conseguiria registrar uma gota de agradecimento. De joelhos, agradeci o tempo em que a casa nos abrigou com conforto e bem-estar. Agradeci por tudo o que aprendi em todo o período, vivendo ali. Na oração pedi ao Infinito Bem que tudo naquela vivenda se mantivesse íntegro e funcional e que a nova família a entrar fosse abençoada e protegida com a felicidade pelo usufruto de toda a comodidade. Sei quanto este conto beira os limites do inverossímil, mas a vitalidade com que as plantas se reergueram, no dia seguinte, me falou de paz.

A partir de então, criei vários lembretes de agradecimento na forma de seixos rolados, aqueles fragmentos de rocha retirados do leito do rio, que quando vistos ou tocados, me agregam a lembrança dos muitos motivos que tenho para agradecer. Distribuí vários deles pela bolsa, pelas gavetas, prateleiras e lugares onde as mãos procuram objetos de uso diário. Assim, quando minha mão roça numa dessas pedrinhas ao procurar qualquer miudeza ou quando meus olhos recaem a visão sobre uma delas, é hora de agradecer, é hora de elevar o pensamento ao Criador em louvor e com gratidão.

Para todo o sempre, agradecerei por tudo o que temos e recebemos, e por tudo o que nos é permitido conhecer, ver e fazer. Ainda que este sempre seja tão breve que caiba na palma da minha mão, agradecerei com alegria sentida, dessas que ficam a crescer-nos como heras floridas nos muros do espírito.

E agradecer é arte a ser praticada com devoção: a nossa alma deve misturar-se ao gesto, nossas palavras devem conter o calor da sinceridade e a força da intenção. O resultado precisa imprimir a energia do nosso reconhecimento e a certeza da nossa sintonia com o Bem Maior. O que conta é o fervor do sentimento e a espontaneidade do ato. É uma reverência especial da alma a sós com a Bondade Suprema, respeitosa na informalidade das palavras, verdadeira no rogo ou na exaltação que fluem do peito aberto.

Por tudo nos cumpre dar graças. Somente quando nossos corações se expressam gratos é que estamos prontos para multiplicar as graças generosas do Altíssimo. No milagre da Multiplicação dos Pães, antes de partir o pão e os peixes para serem distribuídos, Jesus os tomou nas mãos para dar graças.

Normalmente, o ser humano resmunga irritado diante das dificuldades ou do mínimo obstáculo a transpor na sua rotina. Não percebe que as refregas no quotidiano são oportunidades de fortalecimento e exercícios de perseverança. Desaprende a bendizer o dom da vida, a oportunidade de crescimento em cada novo dia, os dotes recebidos em abundância, as bênçãos que retém nas mãos. Sequer identifica as pequenas graças de cada instante ou reconhece nos pequenos prodígios o imenso amor com que o Pai Misericordioso nos unge com suas santas mãos.

Mas em tudo nos cabe um “Muito Obrigado” ao Eterno Benfeitor: no recebimento dos bens, das dádivas e dos milagres, assim como na passagem por provas, por sombras e por espinheiros, pois tudo faz parte da depuração necessária ao espírito na caminhada para a Luz.

É assim que, a cada dia, podemos ser e saber um pouco mais do que ontem.

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CRÔNICA 38

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5 comentários:

  1. Amiga Regina.
    Sou fascinada como consegue transformar em poema cada situação tão corriqueira nas nossas vidas... Quem já não passou por isso e deixou de refletir com a visão que voce empreendeu? Esta sua crônica, me veio como uma majestosa reflexão para cada dia: Quando mudamos de casa, cidade e até de planos de vida costumamos deixar de cuidar dos amigos que plantamos e cuidamos enquanto estavam tão próximos! Seria porque deixamos de colher deles as flores que enfeitavam nossas salas? Porque nossos olhos não estão mais a ver que uma ou outra folha deles estão secas e precisamos revigora-los? Será que não mais observamos que ervas daninhas começam a se achegar de seus caules e carinhosamente buscamos arranca-las? Será que, por não observarmos mais que a roseira está envelhecendo não nos presenteia mais com flores? Quando estamos cuidando, constantemente, mesmo que de forma dolorida, a podamos para que reaprenda a ser linda para o jardim?! Nem todas as plantas são flores-do-campo que, mesmo com poucos cuidados, mantêm por si só a altivez da sua beleza singela.
    Lindíssimo, amiga! Ainda creio que havemos de cuidar nas nossas mudanças: difícil carregar conosco as rosas ou roseiras ou pior, cuidar onde ficaram, mas atentarmos para que não nos mudemos e no próximo quinhão da vida, percebamos que distraidamente carregamos muitos carrapichos nas barras de nossas calças... Esses nos acompanham sem pedir licença!
    Cada dia sinto falta de suas lições de vida, amiga!
    Deus continue te abençoando.
    Beijos.

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  2. Anjo meu,
    De todas as mensagens que li aqui no seu blog, talvez essa não tenha sido a que me trouxe mais emoção, mas sem medo de errar afirmo que foi a lição publicada mais importante, digo, sublime. A primeira leitura conduz a uma segunda, e depois a uma terceira e quem sabe na quarta vez! Precisei ler várias vezes para interiorizar suas tão cristalinas e profundas palavras. Agradecer é uma arte, de fato. Sinto-me grato a Deus por todas as conquistas que atinjo, por todo o amparo divino que recebo, por estar vivo e consciente, por ter meus entes amados ao meu lado e usufruir de suas companhias, enfim, por tudo o que recebo de Suas mãos. Ocorre que nem sempre é fácil agradecer e a alma rebelde reclama das adversidades da vida. Depois que li sua sublime lição (me nego a chamá-la de mero conto de acaso)vou seguir agradecendo os presentes que gratuitamente recebo de Deus, mas também seguirei tentando educar meu coração para ensiná-lo a agradecer pelas dificuldades também a mim enviadas. Entendi que o sentir-se grato é a ponte que nos liga a Deus e ao entendimento de sua grandeza! Fácil será agradecer se entender os desafios da vida como oportunidade que Deus me oferece para enfrentar um problema, superá-lo, seja pela dor, seja pelo esforço, e evoluir...melhorar espiritualmente. Tentarei pensar assim agora. Parabéns mais uma vez e pela lição eu deixo aqui registrado o meu sincero agradecimento e espero o próximo conto de acaso! Até.

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  3. "Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco. I Tessalonicenses 5:18"

    Regina,

    Penso que essa é uma das coisas importantes que aprendi desde pequena..lembro-me dessa passagem bíblica em um cartaz bem enfeitado, na parede da minha sala de aula!
    Achei fantástico a idéia das pedras, não consigo deixar de agradecer quando as vejo, pois me parece automático.
    Agradecer, no fundo, é reconhecer a soberania e bondade de Deus: lembrar que tudo vem Dele e que todas as cooperam para o bem daqueles que o amam! E vejo que você conhece esses segredos, motivo pelo qual admiro você.

    Muito obrigada por nos edificar com esta bela mensagem!!!

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  4. Que conto bacana! Bem, outro dia estava um pouco aprensinvo por supor que Deus estaria chateado comigo e, consequentemente, me ignorando.
    Meditando sobre o assutno, olhei em volta e percebi que, ao meu lado, havia pessoas que enfrentaram, por mais tempo ainda, situações mais difíceis das que estou atravessando.
    Percebi que as dificuldades vão ser superadas, claro que com uma boa dose de esforço, e certamente terei muito o que agradecer.
    Mas enquanto não passa, sei que posso desde já agradecer a Deus pela solução que virá (sei que chegará na hora certa), cuidado que Ele tem por nós, pela superabundante misericórdia, vida, saúde, paz, comunhão etc.

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  5. Cara Regina Falcão,
    Lindo texto! Parabéns pela bela narrativa, fez-me agradecer em prece.


    Li quase todos os seu contos disponíveis no blog e fiquei maravilahada. Um grande presente teus escritos! Regina, estou à procura de contos de assombração para uma exposição na escola e gostei demais do "Juro que vi" e queria saber como posso divuga-lo no evento. Caso autorize, preciso de uma breve biografia e foto sua para a exposição. Posso aguardar um contato? Desde já agradeço a atenção.
    Um grande abraço e muito sucesso na sua carreira!


    Elisangela Alves Silvério
    Professora da Rede Estadual de Educação de São Paulo
    elissilverio@hotmail.com
    12. 39515018 EE Dona BENEDITA FREIRE DE MACEDO - Jacareí - SP

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REGINAFalcão