sábado, 23 de janeiro de 2010

AFAGO EXPLÍCITO


Apareceu-me aquela cena a se repetir vinte anos depois, como se ressurgisse do interior de uma lembrança. E, mais uma vez, assisti, como quem diz poemas, com quantas expressões corporais se declara a palavra amor.

Há mais ou menos duas décadas, o veículo dirigido por uma senhora estacionava frente ao prédio onde eu trabalhava. Na matemática dos passos de todas as manhãs, um pai, elegantemente vestido de sentimentos, abria a porta do carro e se dirigia ao banco de trás para acomodar o garoto de dez ou onze anos no banco da frente. Antes de se despedir, curvava-se e arrumava a gola do uniforme do filho para, ternamente, depositar-lhe um beijo na testa. Da raiz das mãos ao tampo do cérebro, trazia o coração atrelado a todos os gestos pelo lado de fora. Dirigia-se ao trabalho levando consigo a rua toda até os confins, onde o automóvel fugia da vista. Aquele ritual diário me enchia os olhos com um cheiro de aconchego, desses que se enroscam em nossos ombros e nos adormecem a ânsia.

Como a vida é feita de direções e toda direção tem vários sentidos, meus caminhos apontaram-me outros rumos profissionais e não mais vi tão distinta família. Hoje, por uma coincidência programada pelo destino, um sedam dirigido por motorista particular parou frente ao Fórum e dele saiu um jovem de porte altaneiro em terno bem talhado que se dirigiu ao banco de trás para acomodar no banco da frente um idoso em traje casual, o mesmo personagem do passado, agora na informalidade da aposentadoria, convivendo com a neve nos cabelos e o peso dos anos a curvar sua postura. Como dantes, falavam-se mais com sorrisos que com palavras. Antes de se afastar para os compromissos de gente grande, o bem-sucedido rapaz ajusta, sem pressa, os óculos do pai ao nariz e curva-se para depositar-lhe um beijo na testa, com devoção. O aceno com as mãos denuncia um olhar que carrega uma pessoa inteira dentro. Na inversão dos papéis, o halo dos afetos sobreviveu à mudança das estações e tudo naquele afago explícito continua viçoso e belo.

A simples menção desse acaso amorna a minha suscetibilidade, então eu deixo que da memória se soltem outras lembranças, dessas que ameigam os nossos ossos e nos mordiscam o coração. Aí me vêm os quadros de um seriado da televisão nos anos 70 – The Waltons - narrando a história de uma família rural americana que morava numa montanha tentando sobreviver dignamente às crises advindas da Grande Depressão. No final de cada episódio, a famosa cena em que a imensa casa da família é focalizada durante a noite com as luzes se apagando cômodo a cômodo, com exceção de uma janela no andar superior, onde alguns personagens comentavam com bom humor os incidentes vividos durante o dia e a partir daí, todos trocavam um “Boa Noite”. Assim, faziam-se ouvir as vozes de cada um se despedindo para dormir: “Boa Noite, John Boy”, que por sua vez replicava: “Boa Noite, Mary Ellen” e seguia o “Boa Noite” de boca em boca até que todos se aninhassem numa teia de carinho para pegar no sono. Aquilo era a marca coletiva daquela família e o ponto mais interessante para minha ansiosa espera. O clima confortante de bem-querer criado por tantos “Boa Noite” entre os pais e os sete irmãos poderia, para muitos, parecer antiquado, fadado ao desuso, mas para mim, se tornava o ápice do capítulo, porque me lembrava as coisas que realmente fazem valer a pena conhecermos e vivermos nessa passagem terrena.

Penso eu que expressar sentimentos e emoções é uma das formas de interagir com os entes queridos, mas quando essas atitudes envolvem a relação entre o pai e o filho, a expressão afetiva geralmente se esconde por sofrer interferências culturais da sociedade em que vivemos. Assim, culturalmente predomina uma visão de que o homem, para manter blindado o simbolismo da masculinidade, deve conter a exteriorização de suas emoções, interceptar os arremessos da sensibilidade, deixando a descoberto a todos apenas o seu lado racional. Sentimentos e emoções que denunciam afetos são amordaçados para garantir o disfarce. Assim, o menino, no crescimento, deixará de desfrutar de um abraço, de ganhar um consolo, de receber um incentivo ... que nada mais são do que um arrimo para exprimir força, para fortalecer os vínculos, para oferecer apoio, para mostrar a estima.

Felizmente, o homem dos novos tempos está largando a casca que lhe fantasiava de imperial, rude, indiferente e está incorporando valores mais "humanos" de diálogo, de afeição, de calor humano, tornando-se um novo modelo de pai, vivendo por inteiro, assumindo suas emoções, admitindo sua afetividade à tona do peito e, quem sabe, assim permitir a erupção vulcânica dos sentimentos represados.

Externar emoções com os integrantes do nosso convívio, principalmente com os nossos bem-amados, proporciona modificações positivas nos diversos ambientes, em todos os âmbitos, e melhora sobremaneira a qualidade de vida de todos os que participam do círculo. Basta considerar que a liberação da afetividade, segundo estudiosos, previne o bloqueio de energias e seus efeitos maléficos no organismo.

Um “Bom Dia” ou um “Boa Noite” expressivo, um sorriso, um toque no ombro, um aperto de mãos, um cafuné e até um belisco carinhoso são as práticas mais gostosas de traduzir: “como te quero bem” ou “estou aqui, se precisar”.

É quase meia-noite deste lado do Mundo, e enquanto escrevo este conto, meus filhos já vieram, pelo menos duas vezes, atravessar uma trilha que há no meu peito, sentar-se do meu lado esquerdo a balançar-me o coração e me trazer um “Boa Noite, Mãe! Durma bem!”. Esse chamego, esse agrado, sempre me deixa o efeito colateral de um molhado nos olhos a me atravessar o sorriso. E eu sou muito feliz por isso.

Boa Noite, querido leitor.

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CRÔNICA 29
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4 comentários:

  1. Boa noite querida fada!

    Sem me importar em parecer repetitivo nos meus comentários afirmo com entusiasmo que esse foi um dos textos mais lindos que já tive oportunidade de ler na minha vida. E olhe que já li muito! Desconfio que você não é humana, tamanha a pureza e elevação de seus contos. Parabéns pelo angelical ensinamento e pelo sublime exemplo. Esse conto é tão lindo quanto o que a levou ao primeiro lugar no concurso de contos do SESC/AM, "Uma História de Amor". Pode esperar outra vitória se resolver concorrer no próximo concurso com a "Expressão da Afetividade". Na verdade, penso que esse conto me tocou bastante em razão de que constantemente me cobro demonstrar seja por palavras ou gestos o amor que sinto pela minha família. Dizer Eu te amo para os meus faz minha alma pulsar, tamanha a vibração positiva que qa palavra AMOR contém. Sem falar que privar-se de demonstrar o afeto que se possui a marido, esposa, filhos, pais, avós e amigos, conduz ao inevitável arrependimento quando Deus em Sua sabedoria infinita os chama para subir ao plano espiritual! Assim, fico por aqui...agradecido pelo conto...e aproveito para exprimir minha profunda e sincera admiração. Parabéns e Boa Noite!

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  2. Querida amiga Regina,
    Mais uma vez, não pude deixar de saborear palavra por palavra sua crônica! A cada linha, eu me transportava às idades de criança, menina, menina moça, jovem, e agora adulta. Entendo que um mesmo gesto tem implicâncias diferentes na gente, dependendo da idade. Quando crianças, um beijo na testa, não é nada mais do que um sentimento que sentimos de proteção; quando menina, já não representa muita coisa; quando menina-moça, já passa a ser algo de que não gostamos, principalmente em frente às coleguinhas; quando jovens, não fazemos questão já que as colegas sempre nos esperam do lado de fora para sairmos esfuziantes para as congregações. Mas depois de adultas, começamos a sentir a ternura de um afago, de um beijo na testa, começando a sentir os corações palpitarem em único compasso. Creio que depois de amadurecidas, os mesmos gestos vem acompanhados de um umedecimento nos olhos cerrados e com o coração prestes a explodir a cada beijo na testa...
    Passamos uma vida pedido a Deus de tudo: sorte, paz, alegria, dinheiro, aprovações em concursos etc. mas chega uma hora que, sem que nos apercebamos, pedimos muito pouco; só saúde e uma vida de paz pra gente e para quem amamos. Depositamos, então, em forma de beijo na testa, a essência das nossas súplicas. Um dia virá em que pediremos quase nada, a não ser perdão por não termos oferecido nossos sentimentos, capacidades e dotes para que Ele faça disso uma ferramenta em nós para o bem de quem amamos. Melhor ainda , se passarmos de pedintes a ofertantes de nossos corações, sentimentos e energias para proteção de quem precisa, nem que seja com um singelo mas puro “beijo na testa” a uma criança ou a um velhinho desamparado.
    Regina, saiba que seus pensamentos nos vem encharcando as suas palavras, o que nos deixa emocionalmente estremecidas e motivo para revermos, sempre sempre, as coordenadas de caminhos e destinos em nossas vidas, com ajustes finos do GPS que a vida nos deu.
    Obrigado, querida!
    Que Deus continue mantendo essa luz que há em você, pois seus raios são importantíssimos para iluminar nossos caminhos.
    Mil Beijos (ah eu já estava morta de saudades de suas crônicas)

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  3. Reiterando o que já havia dito logo após a publicação do conto, os princípios que vocês (você e sua família) demonstram em cada ligação para perguntar se está tudo bem, cada bom dia, boa noite, cada gesto de carinho...me presentearam uma nova forma de pensar e agir com aqueles que eu tanto amo! Desde o dia que tive a felicidade de conhecer esta família maravilhosa, aprendo e cresço com o coisas pequenas...
    Este conto representa fielmente o que você é: um ser cheio de afeto!!!

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  4. Boa noite querida e amada mamãe!!! Hehehehheheh.

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REGINAFalcão