terça-feira, 8 de setembro de 2009

BRASIL ENFERMO

Cedinho da manhã de Sete de Setembro. No prédio onde moro, o elevador abre a porta num dos andares e uma vozinha mirim meio rouca apressa: “Anda, mãe! O elevador chegou”. Dois garotinhos de bochechas rosadas e cabelos arrumados com gel, cheirando a colônia de barba e aparentando oito vivazes anos, empunhavam miniaturas da bandeira do Brasil. Afobados, levantaram a voz, segurando a porta: “Mãe, eu não quero chegar atrasado no desfile da Independência”. Há tempos eu não presenciava essa manifestação de ardor cívico com esse espírito de brasilidade explícita. A mãe apareceu esbaforida, capengando, uma mão ocupada com batom e a outra fechando o último brinco na orelha, ao mesmo tempo em que tentava encaixar os sapatos nos pés. Justificou a euforia dos moleques: “Eles são apegados às coisas do Brasil. Conhecem toda a Geografia e principais fatos da nossa História. Querem se tornar políticos para trabalhar pelo Brasil e ficam disputando quem se aprofunda mais ou quem melhor se prepara. E eu fico na linha de fogo dessa concorrência”. Nesse instante, um dos gêmeos, com o desembaraço e o charme de um comunicador de massas, levantou o polegar com veemência, afiançando o discurso da mãe. Todos demos risadas.

Enquanto o elevador “viajava” até à garagem, minhas idéias se transportaram espaço afora até o Congresso Nacional – a Casa do Povo – onde a teoria reza que a democracia ali toma corpo na genuína representatividade popular. Adentrando os umbrais da imponente obra arquitetônica de Oscar Niemeyer, na capital do País, vem à tona a enfermidade que aflige o Brasil e se prolifera entre o alto escalão da classe política brasileira: a corrupção endêmica e o crime político organizado. Uma minoria incorruptível que se imunizou do contágio tenta, infrutiferamente, a desinfecção da casa para deixar os caminhos políticos limpos e livres da infecção pestilenta. Essa moléstia é alimentada pela mentira sem pudor e pela certeza da impunidade; reforça a resistência com a desinformação do eleitorado e com a conivência partidária com os delitos cometidos pelas quadrilhas de colarinho engomado; conta com a lentidão da justiça e com o tempo a transcorrer para ativar o nosso esquecimento e anestesiar a nossa memória.

No período pré-eleitoral, fervilha entre nós a expectativa da renovação das forças morais para atender à necessidade que tem a Nação de melhorar a representatividade parlamentar: envolvimento com o interesse público, amor ao país, elaboração de leis igualitárias e solidárias, etc. Porém os maus políticos eleitos e seus ultrajantes episódios prestam um abominável desserviço à democracia. As catástrofes vêm sendo publicadas e reveladas pela imprensa com todas as letras, todas as evidências e todas as provas, expondo as vísceras corruptas de um Brasil enfermo.

Blocos de demagogos e populistas assolaram a nobre Casa Legislativa onde parece que ninguém apóia ninguém por convicção ideológica; parcerias e alianças são pactuadas, unicamente, visando interesses financeiros, numa troca de vantagens pessoais em prol da mediocridade. Posso listar algumas mazelas mais recentes que levaram a República, desmoralizada, a verter dos olhos fios contínuos de sangue: financiamentos não declarados nas prestações de contas do país; negociatas de cargos na administração pública e nas estatais; verbas indenizatórias fantasmas dos deputados; ONGs imaginárias e convenientes; voto de congressistas, induzido e barganhado; manipulação, pelos partidos, de recursos de alta soma, suspeitos quanto à origem; cumplicidade habitual entre empreiteiras e políticos; atos secretos que ofendem os princípios da publicidade e da moralidade da administração pública; alianças espúrias em nome de uma governança, que a meu ver, não garante nenhuma governabilidade, e sim a gerência de interesses particulares escusos e inconfessáveis.

Ora, até mesmo um leigo percebe que as revelações trazidas pelas denúncias e o que se desenha nas investigações desprestigiam e desqualificam a -p-o-l-í-t-i-c-a- que é, justamente, a essência, o cerne do processo democrático. Não se trata mais de uma simples crise do Senado ou da Câmara Federal, isoladamente. Verifica-se uma crise da democracia representativa e de seus valores. Como se referiu Arnaldo Jabor em recente comentário: “Não se trata mais de um problema moral. As instituições estão sendo implodidas por dentro, pelos próprios donos do poder”.

E a que se deve toda essa degenerescência a conduzir a História em marcha a ré? Julgo que advém, principalmente, do famígero “jeitinho brasileiro”, da conhecida e execrável malandragem de antipatriotas para empregar a coisa pública na satisfação de intentos privados de um grupo seleto de oportunistas. E iria mais longe: da falta de educação doméstica, da má-formação do caráter que lhes extirpa o escrúpulo e a hombridade, e lhes cobre a hipocrisia crônica com um cinismo desconcertante. Nossos maus representantes, fingindo legislar, abusam de seus poderes e defendem seus interesses próprios, protegidos pelo intocável campo de força da imunidade parlamentar. À margem da falta de compromisso com o bem social, com o interesse coletivo, mínguam-se recursos para atender às prioridades como educação, saúde, segurança, saneamento básico e rede viária. As antigas bandeiras da justiça, da liberdade e da ética na política foram relegadas ou enfraquecidas por um pragmatismo cáustico e sem firmeza ideológica nenhuma.

Todos sabemos que a corrupção é uma chaga universal. A tendência maléfica para a corrupção está implantada na natureza humana desde o início dos tempos. Faz parte do pacote genético que recebemos para esmerilar a nossa índole. Mas grande parte dos políticos engolfa-se vorazmente nas torpezas dos seus instintos anti-sociais e se coloca acima das leis, esquecendo-se da inevitável contabilização dos atos diante do Supremo Juiz no Tribunal de Contas Divino. A corrupção zero é utopia, eu bem sei, mas a sociedade tem o dever de persegui-la como meta maior e cobrar rigor no trato da coisa pública pelos agentes políticos escolhidos nas urnas. É preciso fazer valer a cidadania e votar corretamente para renovar por inteiro o nosso quadro de representantes e, assim, reverter esse panorama viciado. Não existe democracia sem um parlamento ativo, isento e independente. Todos devemos defender e preservar a magnitude daquela elevada instituição, escolher com melhores critérios e consciência cívica os candidatos a merecer a honra de tocar com os pés os salões do Congresso Nacional brasileiro.

É preciso, ainda, mais que tudo, uma melhor formação das crianças, porque da população infantil mal formada brotam também políticos. Urge que forças edificantes da sociedade, como a família, a escola, a igreja, estendam a educação no sentido do desenvolvimento integral do indivíduo, para a formação de cidadãos melhores, conscientes, éticos, responsáveis, dignos. Que se cultive a aversão à antiga cultura da esperteza, da lei do mais forte, do privilégio, das facilidades clandestinas e outros caminhos desmoralizantes. Os esforços devem concentrar-se na abolição do orgulho, do egoísmo, da cobiça e da ganância que nos levam a burlar leis. A origem do problema é humana, é básica: é a inexistência da solidariedade, do altruísmo, da honestidade, do amor, do decoro, da coragem, do bem...

Depois de toda essa aventura pelas sessões do Poder Legislativo, retorno a minha atenção à companhia dos simpáticos vizinhos e me flagrei envolvida num misto de alento e orgulho por ter testemunhado o vigor e o entusiasmo dos pretensos futuros congressistas, ali na minha frente. Ao nos despedirmos, brinquei com razoável seriedade: “Sucesso aos senhores na carreira política”. E intimamente, completei: “Oxalá na sua safra, essa Pátria amada, idolatrada que é o nosso Brasil em berço esplêndido, possa clamar: “Já raiou a ética no horizonte do Congresso Nacional”. ...Sonhar, não custa.
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CRÔNICA 22
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5 comentários:

  1. Regina,

    Muito boa e apropriada discussão sobre a situação do nosso Brasil.
    Parabéns!

    Rosa

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  2. Amiga Regina,
    Ontem li e reli seu artigo por 3 vezes e hoje novamente. Posso dizer que é irretocável todo o seu comentário. Por sinal, cada palavra exacerbou ainda mais meu senso crítico dos políticos que, infelizmente, colocamos no Congresso, Câmaras Estaduais e de Vereadores. Sabe o que mais me assombra ainda? É que existem outros em número exponencialmente maior na fila das cadeiras. Muito apropriada sua observação “Todos sabemos que a corrupção é uma chaga universal...A tendência maléfica... desde o início dos tempos.” Sinto tanta vergonha de não sabermos garimpar pessoas de bem para nos representar!!! Sim os que tem o dom da oratória, retórica e dom diabólico de conseguir nos convencer que a laranja é doce, apesar de aparentar um limão.
    Eu mesma sempre fui ciente que política, mídia e justiça são o tripé dessa mesa que não balança! A mídia por falta de preparo e arroubo por notícias e furos financeiramente interessantes pela venda dos canais de comunicação; daí, faltam provas suficientes para engasgar esses políticos sem escrúpulos. A justiça também tem a sua parte por conseguir provar que a pulga é maior que o elefante; daí não se prova nada que incrimine essa corja! Cadê as leis que dariam firmeza à justiça? São os políticos que fazem. Cadê uma imprensa, uma mídia competente e de crédito? Estão nas mãos de políticos ou agregados dos políticos! A quem recorrer então? Não sei mesmo...
    Não tenha pressa, pois sempre existiram crianças com os perfis dos que encontrou no elevador, mas infelizmente o “homem é produto do meio” . e o jogo da vida arrebata os que sonham estar bem no alto! Saiba que a saúde, educação, segurança estão ótimas no Brasil. Basta internar-se no Hospital Albert Einstein, estudar na UNB ou USP ou colégios particulares e não se despregar de meia dúzia de seguranças. Só isso! Por isso tudo aquilo que levantamos para ser cortado como num vôlei, o jogador faz questão de cortar errado ou bloqueia. Pontos para o povo? Quase nunca, a não ser cestas básicas e vales isto e aquilo pois isso vai ajudá-los a sentarem novamente naquelas fofas e rentáveis poltronas. Não posso deixar de comentar as posturas até glamurosas e piegas dos políticos quando em oratórias frente às câmeras da TV Senado, TV Câmara, etc... Impressionante como são preocupados com o povo!!! Pura hipocrisia! Mais uma vez: Como sempre, você foi extremamente feliz nesse artigo. Te admiro a cada dia mais. Por essas e outras é que sinto tanta falta dos seus artigos. Beijos amiga!

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  3. Parabéns pela multiplicidade de abordagens!

    O conto é uma importante reflexão. Sempre que me deparo com os males da humanidade tento achar a raíz deles. No caso da atual condição de nosso país sou levada a acreditar que o problema está na forma como nossas crianças estão sendo educadas, uma vez que em todos os setores da sociedade é fortemente difundida a idéia do individualismo, o que induz ao enfraquecimento de valores coletivistas. Isto fica bem evidente tanto no descaso dos representantes do povo quanto na indiferença dos eleitores, que até mesmo vendem seu votos em troca de benefícios. Esta é a realidade brasileira: pessoas cegas pelo dinheiro e pelo poder que dificilmente um dia poderão enxergar. A solução é simples e não é uma grande novidade: Educação, educação e educação!


    Um grande beijo!

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  4. G, sabe aquele senhor francês, heroi da resistência, ainda, mesmo morto, faz ecoar suas palavras: ....Tenha certeza, é só questão de milênios, com a mudança de gerações e gerações "O Brasil, um dia, vai ser, sim senhora, um pais sério" é só aguardar.
    Ora, enquanto a política no Brasil ocorrer na base do escambo, tenha certeza, ter-se-á políticos como os que aí estão.
    Hoje, é preferível ter bilhões para reforma de escolas, postos de saúde, organização do tráfego, drenagem e saneamento basico, do que centavos para investimento na educação, saúde, etc.
    Eduquem-se as crianças e teremos um Brasil SÉRIO,
    Ótima abordagem, parabens, P.

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  5. Bom, em primeiro lugar, é com muita tristeza que comento tão tardiamente o seu conto que, por sinal, como usual, é um manjar para o cérebro.
    É a primeira vez que vejo a crítica à ausência da ética e do civismo virar arte poética.
    Bom, mas o texto me tocou muito por outra razão...lembrei que quando eu era bem criança, no colégio eu me sentia a menor das criaturas, pois eu tinha 3 anos, e o resto do mundo me parecia tão grande..enfim..chegou a época do desfile na rua e todos estavam prontos para marchar ao som da bandinha militar, entretanto o desconforto me assolava .. era tudo tão estranho - barulho, alvoroço, gente desconhecida e o choro me vinha nos olhos ainda que eu não quisesse demonstrar.. porém, uma figura altiva, sorridente, encorajadora, bela, doce e familiar surgiu lá..ao meu lado..que alívio..minha heroína apareceu e me ensinou pacientemente a andar .. pé por pé ..naquela marcha de centenas de crianças maiores do que eu .. só assim consegui terminar o percurso.. era você..minha mãe..meu porto..minha paz. Te amo.

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