domingo, 21 de junho de 2009

ENTRE O SONHO E A REALIDADE


Quem não sonha? Quem já não fugiu à dura realidade do dia-a-dia, para se entregar, por momentos, ao devaneio restaurador do ânimo desgastado? Não falo, obviamente, do sonho de olhos fechados. Aludo, sim, ao divagar da mente em busca de ideais e situações em total analgesia às dores infligidas no fragor da batalha quotidiana. Reais? Ilusórias? Atingíveis? Para o devaneador não importa a atribuição de tais predicados ao tema escolhido pelo seu ego. Só lhe importa viver o sonho, viver na fantasia o que lhe é negado pela difícil vida real, ou mesmo deleitar-se simplesmente ao sabor da distração ou, ainda, render-se ao enlevo sob a dormência do amor.

Mas, até que ponto seria válido sonhar? Haveria limites para a prática, cuja extrapolação se afigurasse como perigosa ou não salutar? A questão é profunda. Pessoas existem que sonham quimeras sem quaisquer possibilidades de concretização. Outras há que as buscam em degrau mais próximo e fácil de ser galgado. Algumas fazem do sonho um bálsamo revigorante, antes do retorno à refrega, enquanto eminentes sonhadores se alienam de corpo e alma para fugir às frustrações impingidas. Quem estaria certo?

Antes de responder, analiso sucintamente meu próprio perfil, como sonhadora incurável que sou. Remonto às minhas divagações que começaram a se esboçar aos três anos de idade, quando aprendi a ler e sentia que esse conhecimento me trazia um certo poder. Adentrei muito rapidamente no mundo das histórias infantis e ensaiava, vez por outra, trazê-las para o meu mundo. Assim, no meu imaginário faz-de-conta eu assumia, secretamente, o papel das heroínas dos contos de fadas e me desligava de tudo, por horas seguidas, concebendo nas idéias séries de aventuras para protagonizar. Nesse período, trazia comigo, dia e noite, minha boneca de pano com cabelo de lã que se chamava Zoe e que se tornou a minha confidente, a parceira com quem eu arquitetava minhas investidas para desbravar o mundo desconhecido.

Uma energia vulcânica explodia dentro de mim, minha mente trabalhava ativamente fervendo em ponto de lava ardente. Desse modo, a imaginação encontrava campo fértil nos meus pensamentos, ao mesmo tempo em que a vitalidade derramava pelos meus poros. Assim, em certa fase da minha infância, antes dos quatro anos, uma coleção de machucados nos joelhos resultante das minhas peripécias sobre uma perna de pau, limitou meus inflamados impulsos aventureiros. Os “remendos" com esparadrapos sobre os esfolamentos me obrigaram, em caráter temporário, ao sossego para a cura. Carregando a Zoe inseparavelmente embaixo do braço, entreguei-me ao desfrute da quietude e do silêncio e acabei aprendendo a ver mais com o interior e nem tanto com o tato. Comecei a exercitar a observação, me envolvendo com os atrativos da Natureza e dessa forma “navegava” em incontáveis digressões dentro da minha percepção dos fenômenos naturais:

- Foi assim que me tornei cativa do espetáculo exibido pelo por-do-sol que oferecia uma coleção de sóis diferentes em cada entardecer. Havia dias, na mudança de turno entre a tarde e a noite em que o céu expunha o mesmo sol de formas diferentes, ora ardendo em chamas no espaço até o horizonte, ora se espreguiçando sobre formas suaves e esfumaçadas de sua paleta de cores pastel. Passei a aguardar com euforia a hora em que o dia começa a dormir e a noite vem acordando, para cair em êxtase com a majestade do Rei dos Astros se pondo. Passei a colecionar pores-do-sol, guardá-los catalogados num altar recôndito construído na minha mente para admirá-los quando me aprouvesse, em qualquer tempo e enquanto meus dias durassem.

- Também a chuva, interpretada pela minha lente infantil, tinha especial significado quando vestia a cor do cristal por causa do arco-íris. Vinha, por ordem divina, trazer um anúncio secreto para os meus sentidos: minha imaginação associava esse prodígio da chuva abraçada ao arco-íris, a um prenúncio de bonança, de fartura. Então, me perdia absorta durante a transição entre os pingos d’água fluindo para o desenho do arco de sete cores no céu. Desse momento em diante, esperava sonhando e transbordando certezas, os frutos da abundância (que eu chamava de “coisas boas”) chegarem até nós.

- E as nuvens me faziam acreditar serem um sinal de comunicação dos céus com os mortais. Eu as decifrava sob uma atmosfera sobrenatural. Formavam silhuetas completas como anjos arremessando flocos uns nos outros deixando cair sobre nós os salpicos das gotas de sereno, até se dissiparem em novas figuras. Tal cenário me sugeria um aceno celestial me autorizando explorar com vigor as divertidas brincadeiras de criança. Outras vezes, dragões atirando labaredas de fogo pelas narinas me “abordavam” sobre o excesso de peraltices. Era o momento de recuar e repensar minhas estratégias. E assim, eu me transportava, planando na ficção, captando os comandos das nuvens para direcionar o rumo dos meus folguedos.

Agora eu cresci e fiquei adulta demais para permitir que minhas abstrações flutuem e se percam divagando no espaço sideral. Ancorei meus sonhos com os pés em patamar acessível, mas algumas aspirações criaram asas que atingem as estrelas, colocando em dúvida a racionalidade das minhas pretensões. Assim digo porque insisto em sonhar ver em vida indícios de que a espécie humana caminha para a redenção, de que a paz entre os povos está assegurada, de que a preservação do Planeta é uma realidade... e outros enleios irrealizáveis a curto prazo.

Finalmente, respondendo à questão quanto ao liame entre o sonho e a realidade, invisto meu parecer no cultivo dos sonhos para transformá-los em projetos com data marcada e trazê-los para esta dimensão. Para isso carece, antes de tudo, colocarmos esses ideais em lugar onde os alcancemos, com olhar lúcido sobre a realização das nossas expectativas, do contrário, não há como perseguir utopias ou metas onde a razão esteja ausente. É meu ponto-de-vista eleger aquele que sonha sem esquecer que a vida começa onde o sonho acaba, pois a cada instante em que respiramos, recebemos a dádiva do renascer para novas oportunidades de crescimento e de aproximação com a Divindade Superior. É preciso, portanto, buscar ser feliz de verdade no mundo real para que a passagem por aqui não seja em vão, e o melhor mesmo é acordar para a vida e seguir em frente rumo aos destinos.


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CRÔNICA 19
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7 comentários:

  1. Prezada escritora,
    Esse conto foi um dos mais lindos que você já publicou. Tema delicado, escrita delicada. A própria leitura é suave como um sonho bom de um sono gostoso. Me senti transportado da realidade para as suas nuvens. Parabéns mais uma vez. Demorei a acreditar que sonhos podiam se tornar realidade, pois eu pensava que sonhos bons eram apenas sonhos bons e que a realidade, por ser bem material, deveria ser bruta. Também demorei a ver que estava errado. Que podemos trazer nossos sonhos para o campo das metas e construi-los... daí se desfaz o limite entre o sonho e a realidade, para mim. Hoje penso como você. Fico por aqui e sigo sonhando com o dia em que seus contos estarão reunidos todos num livro...sonhando que você fará um romance ou vários romances...um livro de contos infantis....ahhh...sigo sonhando.

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  2. Putz! Arrasou! Me senti garotinha com você acompanhando suas fantasias de criança.
    No final do texto você exemplifica os seus desejos impossíveis, mas não especifica os que você colocou em patamar acessível e com certeza realizou ou está realizando. Fiquei curiosa, quero saber quais são ou quais foram esses sonhos, estou interessada, porque também quero programar os meus sonhos para trazê-los para a minha real.

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  3. Parabéns pelo conto. Até um homem como eu pode viajar no seu enredo. Gostei muito.

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  4. Aline,

    Obrigada pela participação com tão lisonjeiro comentário.

    Respondendo sua pergunta, posso ilustrar um dos sonhos que transformei em projeto com data marcada: o Doutorado em Ciências Jurídicas. Eu ansiava adentrar no campo da investigação científica no ramo do Direito Público. Em determinado momento, fixei um prazo e me atirei no cumprimento de todas as exigências até a concretização do meu ingresso numa Universidade fora do Brasil. Assim considero um sonho em realização.

    Espero você no próximo texto.

    Abraços.

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  5. Querida amiga Regina,

    De início preciso pedir-lhe perdão pelo fato de não ter acenado carinhosamente com comentário por mais esta preciosidade que escreveu. Saiba que li no dia que escreveu, mas dores no corpo, febre e dores de garganta me levaram a repouso absoluto durante uma semana. Confesso que até me preocupei que não passaria de simples (ou complicada) "virose" conforme diagnóstico. Nem mesmo a febre e dores de cabeça me tiraram a capacidade de raciocinar, refletir e até fantasiar, como tão bem discorreu.

    Mais uma vez, a capacidade e doçura impulsionaram seus dotes para descrever sobre um assunto tão diário, tão importante e tão pouco considerado, a não ser sob as formas poéticas. Eu penso que a fantasia e sonho fazem parte, sim dos nossos dias, principalmente se os sonhamos com os olhos abertos. Para uma donzela, quanto não é importante e vital sonhar com o "príncipe encantado"? Para um empregado operacional, não é constante o sonho ou fantasia de ser um diretor ou presidente da empresa, nem que seja pra vingar uma atitude mal recebida por este empregado? Pra quem amou visceralmente no passado, não é uma constancia sonhar ou fantasiar em ter sua paixão nos braços em qualquer época que seja, estando ambos nas melhores das formas, físicas, sentimentais, financeiras para curtir as belezas onde quer que sonhem estar? Concordo plenamante com você quando esboça classificar as fantasias como factíveis e realizáveis, mas não creio que seja a idade a divisória, mas sim a capacidade de conviver com essas fantasias. Para uma artista de palco, certamente ela revive na mais verdadeira acepçao, uma personagem de Branca de Neve. Se ela não sonhar, não fantasiar, não a incorporará, não é mesmo? Penso, ainda, que a fantasia quando libertada dos nossos puros sentidos, podem se transformar em nós, de duas formas; nos travestindo das imagens sonhadas (veja os cowbois e cowgirls que transitam livremente nas praças e festas de peões) fazendo-os comportar como tais, sem preocupações com comprovações do formato escolhido; essa fantasia pode também nos transformar radicalmente no que sonhamos quando, passo a passo, conquistando cada espaço ocupado pela fantasia. Como? Os sonhados médicos, pilotos de avião, astronautas, militares visceralmente assumidos. Quantos já não os sonharam e quantos os realizaram?

    Lindo: "...quanto ao liame entre o sonho e a realidade, invisto meu parecer no cultivo dos sonhos, para transforma-los em projetos com data marcada e traze-los para esta dimensão". Que felicidade de descrição! Digno de uma rubrica sua. Sabendo-se que sonhar eh um ato da alma, do espírito e planejar é um ato humano e calculado, a intercecção dos dois na realização humana, certamente eh o projeto divino para um humano realizador, que tem com o prazer do vislubrar antes mesmo de realizar.

    Regina, lembro-me de ter lido algo sobre um garoto que sonhava chegar a Marte, depois de ler o famoso livro Guerra dos Mundos. Subia no alto de um pé de cerejas e ficava imaginando como ir até aquele planeta magistral, como o livro descrevia. Sonhou, sonhou até que em 1920 começou testes com pequenos foguetes com propulsao liquida. Belo embrião de transporte ele havia criado. cujo principio básico até hoje é usado pela NASA! Homem sonhador, fantasiador e fantastico; Robert Hutchings Goddard - (Worchester, Massachusetts, 5 de outubro de 1882 — Baltimore, Maryland, 10 de agosto de 1945). Faleceu e não viu seu sonho ser realizado...

    Por fim, amiga, peço encarecidamente, que nunca, mas nuuuunca mesmo deixe de sonhar, mesmo que seus sonhos não sejam realizáveis palpavelmente, mas pelo menos continue a externa-los nas suas formosas formas de comunicação, pois um sonho ou uma fantasia sua certamente será um sonho ou uma fantasia, mas talvez até realizável para as pessoas que te amam e te cercam. Divida conosco enquanto puder, seus sonhos... São razões de sonhos que as que temos com olhos fechados ao deitarmos e com os olhos abertos ao admirarmos sua fantástica coleção de "por-de-Sois". Um beijo carinhoso, Amiga!

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  6. A definição da fronteira entre o sonho e a realidade é um tema bem interessante. De um modo geral, as pessoas possuem certos sonhos em comum. É algo que as une. Mas a perseverança e a determinação do sonhador é que é capaz de trazer essa linha de fronteira para perto.

    De qualquer forma, há utopias que inspiram, essas não cruzam a linha de fronteira, mas deixam pingos.

    É isso que aprendi com o conto.

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  7. Muito bom, está cada vez melhor. Sonho um lindo tema Ah é... Quando a gente encosta a cabeça no travesseiro e dorme feito a criança. Ou, quando queremos muito uma coisa difícil de conseguir. Ou ainda, a brincadeira dos três desejos mágicos. É bonito ter sonhos, acreditar, ver o futuro e criar centenas de idéias na cabeça! A gente faz um montão de versões pra nossa vida, mas nem sempre, ao menos uma delas, acontece. Talvez seja um pedido pra que os sonhos continuem. Você nos transportou a infância, nos fez sonhar. Pessoas como você que tem sonhos criativos representam seus sonhos através da escrita. Muito obrigada, fiquei emocionada.

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REGINAFalcão