sábado, 2 de maio de 2009

MEUS LIVROS EM SESSÃO


Passeio os olhos pelo escritório da minha casa e vejo uma profusão de livros calados me olhando vivamente interessados, esperando de mim uma atitude que lhes realce o brilho. Recosto na poltrona para escutá-los, confabular com eles e, quem sabe, arriscar uns rabiscos filosóficos sob a ótica do meu filosofal viver.

Penso que há uma relação estreita e direta entre ler mais e pensar melhor.

Pensar é uma inerência do ser humano, faculdade mental de todos: ricos e pobres, sãos e insanos, cultos e ignorantes. Quaisquer que sejam as impressões acumuladas ao longo da vida, o exercício mental é uma constante: as idéias sobrevêm como fruto das impressões recebidas. É algo natural, próprio da espécie humana.

Porém, refiro-me a uma condição mais complexa: à ordenação lógica do pensamento, à educação e treinamento do raciocínio, para que ele flua de modo sequencial, elegante e harmonioso. Por brilhantes que sejam as ideias, se emitidas sem esse conhecimento, o resultado não se faz, por certo, perfeitamente transmissível ao mundo externo. Há o risco de a exposição acontecer de modo atabalhoado, ininteligível.

E, como desenvolver técnica que permita, se não atingir a excelência, pelo menos propiciar um perfeito desenvolvimento da ordenação mental? Por meio da leitura, eu diria. Faço alusão a trabalhos de autores renomados, a antologias, aos clássicos, aos expoentes da nova geração e outras obras físicas ou digitais que nos forneçam instrumentos de exercício da matéria. No meu caso, especialmente, há uma longa via a ser percorrida, inebriada no pensamento dos imortais e mergulhada por horas esquecidas no universo dos livros.

Livros!... Tenho compulsão por livros. Vivo entre eles pelo meu caminho, são o meu carma, a minha sina. Apraz-me tragar seu conteúdo, desvendar os segredos de suas páginas, aquilatar suas propostas. No momento em que escrevo este texto, em sessão privada, com a presença da maioria dos meus livros eleitos pelo coração, repasso a vista na minha biblioteca para avaliar o meu relacionamento com todos eles, facultando-lhes a palavra para os devidos questionamentos:

- Os livros lidos, em número razoável, sentem-se agraciados com mérito, privilegiados pela escolha. Mostram, vaidosos, as minhas resenhas nas orelhas; exibem com orgulho os marca-páginas esquecidos em seu interior, como troféus de reconhecimento do seu valor. Refestelados, porém insaciáveis, atrevem-se, em murmúrios, a me inquirir sobre a ocasião em que reviveremos o prazer de uma releitura.

- Alguns volumes específicos da área jurídica, distribuídos sobre a escrivaninha, expõem capas bem produzidas, criadas por designers afeitos ao visual atraente. Estes, em razão do conteúdo, guardam as marcas do meu chamego com suas folhas, convivem em cumplicidade comigo, sempre leais, presentes, habituados aos comandos da pressa e da urgência. Vestidos em rico traje, reivindicam, solenemente, a oportunidade de me acompanhar nos eventos profissionais.

- Outros, interessantíssimos, versando sobre temas diversos, aguardam, impacientemente, a chamada por senha para serem, finalmente, desvendados. Inconformados com a demora, pleiteiam a revisão da ordem de atendimento, simplesmente porque todos reclamam o primeiro lugar.

- Os meus autores prediletos me chamam em silêncio, através de seus nomes que sobressaem nas obras arrumadas na estante, implorando a minha atenção. Enquanto registram a minha ausência do seu convívio, deixam cair no piso qualquer nota conservada em seu poder para atingir certeiro meu remorso pelo descuido com tão importantes vultos.

- Nos livros abertos, os parágrafos em sentinela, assinalados com lembretes, são bravos soldados de prontidão para as minhas pesquisas naquele momento. Aguentam firme os pesos e escoras que lhes inflijo para segurar a informação em estudo. Sentem-se valorizados, qualificados para o labor.

- Alguns livros queridos já estão na fase quase senil, com leitura pela metade, porém, mais valiosos que todos, tornaram-se motivos dos meus ciúmes. São guardiões de assuntos que me embevecem, que carecem de preparo para saborear cada palavra. A mudez das letras pálidas pelo abandono tece frases de protesto num gemido sufocado. Tento argumentar a falta de tempo, mas a cobrança dos mais afoitos pela minha diligência tem uma objeção mais forte: o tempo de validade deles e meu.

- As obras literárias não disfarçam a censura ao meu descaso. Faz muitas luas que não nos encontramos. Clamam alto, envoltas numa queixa doída pela minha companhia. Empenho, novamente, minha palavra cheia de boa-fé de estar com elas em breve, mas a cada passagem minha pelos seus domínios territoriais na prateleira, repuxam a minha roupa ou se engatam nos meus cabelos exigindo o cumprimento da minha promessa.

Todos esses livros, aparentemente estáticos, ao meu redor, têm vida, interagem comigo em imperceptíveis movimentos. Desejam, alucinadamente ser lidos e até, sumariados, se possível, afinal tal prestígio traria uma carícia benfazeja ao seu âmago. Eles todos, como estimados e constantes partícipes de minha vida, desde os três anos de idade até hoje, têm trazido à realidade do meu mundo particular, indizíveis e duradouros prazeres somente sensíveis ao espírito.

Assim, afirmo, convictamente, que além do deleite intelectual que nos trazem, os livros nos abrem o portal onde as possibilidades de fortalecer as habilidades do pensamento constroem, gradativamente, em nosso cérebro, um pensar melhor, de forma coerente, crítica e criativa. Esse pensar “bem produzido” aprimora também a compreensão de nós mesmos e de tudo o que nos cerca. E se, além disso, nos valermos das propriedades da razão, podemos criar e recriar a realidade do mundo em que vivemos; nascerão em nós as asas para a misteriosa, surpreendente e fascinante aventura do filosofar!...

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CRÔNICA 16

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6 comentários:

  1. Prezada escritora,
    Quando venho ver o seu blog aos sábados, venho com o coração aberto para a conhecer e vivenciar um pouquinho as suas aventuras. Desta vez, foi a experiência literária que lhe inspirou. Bom, pelo que percebo, a Excelência do texto é tamanha que não há palavra de congratulação que consiga alcançar o significado do reconhecimento devido. Mais ainda assim eu insisto. Sua inspiração é divina! Seu domínio do texto é magnífico, pois ele, mesmo sem licença, entra na alma e a sacode. Parabéns. Quanto ao teor do conto, a simbiose com o livro fez você assim, essa poeta que enriquece as nossas vidas nos sábados. Adoro sua palavra. Até próximo sábado.

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  2. Amiga, mais uma vez transcorreu sobre um assunto deliciosamente intrigante! Livros!!! Como conseguiu essa felicidade na abordagem!!! Sabe, permita-me incorrer numa heresia, mas “livro” se tornou uma palavra quase que sagrada por diversos e aceitáveis motivos, mas vejo tanta porcaria editada e lançada nas gôndolas de livrarias que começo e a ter minha certeza que “livro = marketing = retornos financeiros”. Vejo que bastam meia dúzia de palavras de alguma auto-biografia bem redigida ou exemplos fictícios de sucesso, que serão consumidos por uma plêiade de curiosos. Entenda “curiosos” não ávidos por cultura ou experiência! Sei sim que um livro que mereça esse respeito só poderá ser classificado como tal depois de lido, mas daí, já foi comprado e devidamente “financeirado”! Foram-se os tempos em que um bom título era sinônimo de um bom conteúdo... Sinto que hoje em dia, um “bom título” é sinônimo de vendas individuais economicamente satisfatórias. Sinto saudades dos tempos em que alguém lia um bom livro e o recomendava aos amigos por ter seu valor reconhecido por quem o leu. Hoje, entramos numa livraria e compramos por recomendação do vendedor ou pelos efeitos do marketing. Você sabe que uma boa “orelha” satisfaz mais uma compra do que às vezes um bom conteúdo, mas quem divulga que o conteúdo é banal e não acrescenta praticamente nada às nossas vidas? Você tem conteúdo e espírito crítico que lhe permite execrar “livros comercialmente corretos”, mas se alguém menos letrado o fizer, será fatalmente taxado de “inculto” pelos “leitores viciados e míopes”. Tenho que admitir que até Palavras Cruzadas bem elaboradas exercitam o cérebro, mas daí até a trazerem conhecimento, cultura e exemplos de bem-viver, os caminhos são muito mais longos. Preferiria mil vezes encontrar um livro de “Contos e Acasos” com sua ótica numa livraria, do que me deparar com títulos lindíssimos e conteúdos esponjosos que não me levem a lugar algum, a não ser o de aumentar volumes nas prateleiras! Sei que estou nadando contra a correnteza de um princípio insípido de que “livros são expressões de cultura e sempre levam ao desenvolvimento da alma”! Isso é verdade, mas com um BOM LIVRO mas não com um livro! Tenho comprado alguns que só me trouxeram decepção e uma crítica incorporada de que “Não basta dominar o vernáculo pra escrever, mas dominar a alma de quem vai ler” Perdoe o comentário um tanto fora dos padrões do que costumamos ouvir, mas é por essas e outras que admiro a cada dia mais e mais o que escreve. COMPRARIA E RECOMENDARIA QUALQUER COISA QUE ESCREVESSE COMO O FAZ EM SUAS CRÕNICAS! Adoro o que escreve! Mil beijos, minha amiga! Não recue um passo de seus focos, nós temos muito a ganhar com isso! Beijos!

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  3. Engraçado, a sensação que tive foi que ao invés de estar em um escritório, na verdade estava em um mercado à moda antiga, onde cada feirante (autor) tentava atrair a atenção do freguês(a) gritando, cantando as qualidades de seus produtos (livros). É como se eu os tivesse escutado. Muito Bem.

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  4. Gostei. Você deu vida aos seus livros. Vou tratar os meus um pouco melhor com certeza. Ler mais para pensar melhor, bacana isso.

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  5. Lindo! você nos mostra que ter um livro nas mãos é extraordinário. Seu conto me tocou profundamente o coração. Ensina que devemos ler devagar saboreando cada momento para deixar impregnar e reletir sobre o significado e implicação para a vida de cada pessoa. A leitura alimenta o coração, a mente e a alma de um modo diferente. Parabéns, sua história é capaz de fortalecer nossa relação com a leitura. Deus lhe abençoe e ilumine.

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  6. Coisa mais linda de se ler!

    Os livros todos clamam pela leitura. E eu simpatizo com todas as pessoas que gostam de ler.

    É o segundo texto de sua autoria que me prende e inspira. Prevejo horas e horas de passeios dos meus olhos de mãos dadas com suas linhas.

    E ainda descubro que és advogada! Admiração maior não há de surgir tão rápido assim.

    Prazer, seu novo leitor, um neófito na advocacia.

    Cordial abraço.

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