sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

ROMANCE PROIBIDO


Na bela capital argentina, os indicativos ostentados por cidade grande: prédios vistosos, ladeados por avenidas paralelas com pistas largas e numerosas; viadutos entrelaçando-se com pressa voraz, a desenharem múltiplos destinos; muito espaço preenchido com imponentes obras arquitetônicas.

Frente ao hotel onde eu estava hospedada, árvores de grande porte cobertas de flores em três tons de rosa circundam a praça imensa decorada por vultoso obelisco. No chão polvilhado por florinhas caídas, revoadas de pombos abrem espaço à cata de pedrinhas e farelos. O ar tem um cheiro de verão, porém um frio invasor penetra nas fibras do vestuário e adentra a intimidade dos corpos pouco agasalhados que transitavam na rua quase deserta naquela manhã de domingo. Na banca de revistas a poucos passos do hotel, selecionei alguns jornais locais para me inteirar dos noticiários, mas ao mirar a paisagem colorida da famosa praça, um semblante desassossegado de um transeunte ligou o sensor da minha curiosidade. Retornei rapidamente ao hotel e pela vista panorâmica da grande porta de vidro da entrada, passei a observar o que se passava.

Ele parece à espera de alguém. Movimenta-se indo e vindo em curto trajeto, com a altivez de um dançarino, mas com uma sombra a anuviar o seu cenho. Em gestos nervosos, passa os dedos entre os cabelos longos até o ombro, como se afastasse um temor já conhecido, algo indesejado. Esfregando vigorosamente as mãos, preme as palmas mornas contra o tórax nu sob a camisa cigana entreaberta, talvez para aplacar o frio, talvez para estancar a saudade a golpear-lhe a pele do peito até os ossos. Finalmente as mãos nos bolsos, buscando uma serenidade ainda que aparente, rodopia uma pedrinha no chão com os sapatos, numa evidente batalha travada com algum tumulto interior a gotejar angústia sobre o corpo jovem e bem conformado.

Do outro lado da praça, uma figura esguia adolescente, esvoaçante em suas vestes indianas, caminha apressada em direção ao belo cigano. Com o coração pesado, a desequilibrar seus passos miúdos, segura a respiração para manter-se de pé. Na ânsia de chegar, ajusta o passo, enquanto vira a cabeça diversas vezes, amedrontada, para despistar os seus medos. A indumentária típica da Índia revela a origem de família envolvida com as tradições de seu país. O sorriso contido aflora na chegada, iluminando o rosto úmido por lágrimas furtivas.

Tudo muito breve, com o mundo inteiro entre eles na distância de um passo. Apenas se olharam com tal enlevo, que se podia imaginar os espíritos de ambos em total comunhão num campo magnético próprio, só deles. Momento muito intenso, arrebatador. O sorriso, agora dolorido, morre nas duas faces. Ele estende-lhe a mão direita e caminham devagar entre as aves. Ela, recostada ao seu lado, voou de seu mundo ideal de amor para aterrissar na realidade de um futuro programado segundo os ditames de seu povo. Percebia-se que ambos choravam, sem disfarce. O motorista (ou guarda-costas) mantinha-se a certa distância, transpirando inquietação pelos riscos da cumplicidade imperdoável.

Tudo aquilo era um adeus, um nunca mais, um selo lacrado com sinete sobre um relacionamento não permitido entre raças ou castas diferentes no século XXI. Nessa despedida, não há consolo, nem volta, nem trégua, nem acenos, somente a consternação pelo adeus último. Correndo de volta para o veículo, rumo à sua sina, ela abriu o coração e fechou o ser amado dentro dele.

Quando o carro se distancia, ele ignora os rostos desconhecidos à sua volta... e se rende ao pranto, de joelhos, com a cabeça apertada entre as mãos, bradando o nome dela, letra por letra, com tal força entre os dentes, até não sobrar mais nada, nem lamento, nem coração, nem dor, somente a certeza da explosão da palavra amor no lado esquerdo do peito, até à exaustão de cada centelha. As lágrimas haviam cegado a sua perda. Abatido, levanta-se e tomba o olhar a esmo, a esquivar-se do tempo e esvair-se no relógio do próprio destino. Tem a cidade inteira, principalmente aquela praça, presa no alto da sua lembrança. Segue lentamente até desaparecer ao fundo, engolido pelos monumentos da grande capital.

Amores impossíveis, romances proibidos, mundos diferentes. Tão longe dos sentidos... tão perto da emoção, tão dentro do coração!...
Naquele instante eu tive ânsia de silêncio buscando entender esses sentimentos que transcendem a razão e esbarram em barreiras intransponíveis no nosso mundo material. Mistérios que fogem à nossa compreensão aqui na Terra, só desnudados, assim imagino, quando da nossa passagem para a outra dimensão. Por tudo isso, me resta a certeza da importância do bem-viver com amor junto aos amores da nossa vida!
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CRÔNICA 11

7 comentários:

  1. Mas uma vez, trazes aos leitores, um belo conto. Mesmo no mundo conturbado em que vivemos ainda sobreviverá o mais belo dos sentimentos, o amor. Mesmo com o sofrimento de uma partida, mesmo com as espurias proibições,nada, por mais doído que seja impedirá o florescer de um amor verdadeiro. Por certo, inúmeros casais hoje separados, reviverão nesse conto, seus momentos de ternura e amor e segurarão seus corações a pulsar dentro de seus peitos. Bravo!!!

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  2. Em primeiro lugar: saudades dos contos. Aliás, não sei do que tenho mais saudades, se do espírito dos contos ou se da forma com que são tão detalhadamente escritos. Cada singela palavra empregada nos seus contos traduz imenso significado a mim, enquanto leitor. Parabéns por mais uma história para a alma. Quanto aos romances proibidos, de fato concordo que enquanto permitidos, devem ser vividos sem os deperdícios dignos de corações ainda mal-educados tipo ciúmes, raivas, desrespeitos, etc.. e etc... Fica um grande abraço. Mais uma vez, parabéns!

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  3. Amiga Regina!
    Que saudade de seus contos...
    Tenho que externar minha admiração pela sua capacidade de descrição de um cenário como esse. Só sua descrição, por si só, nos remete à doce nostalgia... Mais perfeita ainda, as personagens que ali coloca. Inimaginável alguém conseguir passar uma estória inteirinha entre duas pessoas que se amam, numa ou duas cenas observadas pelo prisma de um observador. Você foi magistral no enquadramento de que “o amor ou ódio são perceptíveis em cada semblante, em cada movimento cada minuto da vida”! Você teve a competência de extrair uma estória inteirinha, imaginável pela observação das posturas, semblantes e cenários! O amor é a coisa mais linda do mundo, mas seria somente doce se não doesse um pouco. A dor do amor impossível, torna-o quase que platônico e sarcasticamente enebriante já que se mostra realizável sempre a milímetros das pontas dos dedos...Você demorou pra nos presentear com seus contos, mas quando retornou, se superou mais e mais! Obrigada pela dádiva! Não só das palavras, mas do sentido que consegue extrair quando colocadas lado a lado! Beijos! Você é divina mesmo!

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  4. Regina,

    Concordo com as demais mensagens. Após ler esse conto lembrei de um poema de Camões que gosto muito e que deixo aqui:

    Amor é fogo que arde sem se ver

    Amor é fogo que arde sem se ver;
    É ferida que dói e não se sente;
    É um contentamento descontente;
    É dor que desatina sem doer;

    É um não querer mais que bem querer;
    É solitário andar por entre a gente;
    É nunca contentar-se de contente;
    É cuidar que se ganha em se perder;

    É querer estar preso por vontade;
    É servir a quem vence, o vencedor;
    É ter com quem nos mata lealdade.

    Mas como causar pode seu favor
    Nos corações humanos amizade,
    Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

    Luís de Camões

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    Abraços,

    Rosa

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  5. Que bom que este blog tem novos posts! Pois bem, fiquei com uma dúvida: quem será que sofreu mais? O rapaz que não conteve a tristeza e caiu em prantos ou moça esguia que simplesmente foi e quem sabe sufocou um grande amor?

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  6. O segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim para que elas venham até você. No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você. Nada como o tempo para esquecer. Parabéns amei o seu conto, estavamos com saudade.

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  7. Mais uma vez nos presenteou com um belo conto, onde fala de um romance proibido, dá para se emocionar. Os impedimentos que para nós são bobos. E os que para eles são inaceitáveis, para nós nem existem Não acreditar no impedimento ou achá-lo tolo, isso não interessa. O que importa é acreditar nos sentimentos. Parabéns que o Senhor continue lhe abençoando.

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Obrigada por participar do Blog, comentando este artigo.
Aguardo o seu retorno no próximo conto.
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REGINAFalcão